A Márcia Cristiane da Silva Mendes é padê desde 2014 (indicação da Janette Oliveira), ela tem 40 anos, é Contadora de formação e desde 2014 é Digitadora por oportunidade, porque, após a maternidade não conseguiu recolocação no mercado de trabalho, para retornar para à sua área. Márcia já morou na rua e participou do Movimento sem casa. E hoje conta um pedacinho dessa história pra gente.
Foto: Janette Oliveira
Eu fui uma sem teto
por Márcia Cristiane da Silva Mendes
No ano de 1987, quando eu tinha 9 anos de idade, eu, minha Mãe, irmãos, avó materna e tios fomos despejados de onde morávamos. Era um Clube desativado. Minha Vozinha – sempre presente – morava neste clube há mais de 20 anos. Amontoaram o que tínhamos dentro de caminhões. E eu peguei a minha companheira, minha gata de estimação Sexta-feira 13; ela era preta e apareceu numa sexta-feira 13. A gatinha estava mais assustada que eu.
Fomos morar de favor na casa dos meus tios Dario e tia Márcia, em barracos de madeira, no bairro Braúnas. Foram os anos difíceis, de perdas e aprendizado. Escutei uma frase dura, que carreguei comigo:
“Filhos sem pai e que a mãe não está por perto; não vão dar nada que presta…”
Meus pais são separados desde quando eu tinha 6 anos e a minha Mãe era empregada doméstica: às vezes dormia nas casas de família para trazer o sustento: somos 3 irmãos! Por vezes ela deixava de comer no serviço para trazer para nós; passava fome para dar comida, roupa e material escolar, quando a gente não ganhava! Aprendi que cada um escolhe o seu destino, isto é, Deus nos deu o livre arbítrio e cabe-nos escolher. E cada escolha implica em uma consequência, positiva ou não. Mas, a partir das escolhas, somos responsáveis pela nossa história. Só não entendia porque eu tinha que perder tudo: pai (formou outra família), casa, pertences (fomos roubados no b. Braúnas). Me perguntava: o que fiz de tão ruim nesta vida por passar por tudo isto!
Movimento Sem Casa
No Bairro Braúnas havia muitas famílias que moravam de aluguel, de favor (no meu caso) e/ou eram caseiros. Foram feitas várias reuniões no ano de 1990 com estas famílias e decidiram fazer um Movimento Sem Casa. Houve a primeira invasão na antiga rua “B”. Na época a Polícia Militar interveio e retirou as famílias do terreno. Houve participação da Igreja Católica (Irmãs: Marilda, Maura e Ana Roque, da Congregação Franciscanas Penitentes Recoletinas), de Antônio Cosme e Damião (Toninho) e Paulo, ambos da extinta Federação das Associações de Moradores de Belo Horizonte – FAMOB e da Édila Provini (Presidente Comunitária na época).
As reuniões do Movimento Sem Casa continuaram. Então foi escolhido outro lote grande, também bairro Braúnas, que caberia aproximadamente as 60 famílias, perto da fábrica falida “Laticínios União”. Invadimos. Ficamos lá quase um mês, morando em barracas de lona: no frio, na chuva, no sol. A oração e o canto sempre estiveram presentes na nossa caminhada. Na época havia uma equipe responsável por preparar e distribuir o café e almoço. Infelizmente fomos retirados novamente do terreno pelo Esquadrão de Choque da Polícia Militar. Toninho ficou retido pelos policiais.
Morando na rua
Como não tínhamos para onde ir, decidiu-se ocupar a Regional Pampulha, onde passamos a noite. Até que o Toninho foi libertado. Como não fizeram acordo para nos assentar, fomos morar embaixo das marquises da Igreja São Francisco de Assis, Patrimônio Histórico e Cultural de Belo Horizonte. Barracas foram montadas também pelo jardim! Os Padres Orionitas (Congregação Dom Orione, no bairro São Luiz, em Belo Horizonte) doavam frequentemente: comida, leite e pão que sobravam do internato! D. Ivone também fez doações diversas.
Ficamos lá por alguns meses também. No meu caso e da minha Irmã, foi ótimo, porque estávamos perto de onde estudávamos: a Escola Municipal Dom Orione. Além disso tinha o Parque, que íamos quando ganhávamos ingressos e ainda “participamos” de muitos casamentos; ficávamos lá, aguardando a lembrancinha, o bombom no final dos casamentos!
Aos 12 anos eu era miúda: era magra e pequena, parecia ter menos idade! Para ir aos casamentos, vestia a minha melhor roupa, toda “amarrotada”, porque não tinha energia elétrica nem ferro para passar e calçava chinelos. Só não abraçava a noiva e o noivo! Minhas roupas, na maioria das vezes, eram de doação das casas de família que a minha Mãe e Vozinha trabalhavam. Aprendi o valor das pessoas e não o valor das coisas. Por isto, até hoje não ligo muito para me “arrumar”. Acho mais importante a presença que os adereços! Respeito quem curte!
Como estávamos alterando o ‘design” do patrimônio histórico, fomos “convidados” a nos retirar. Nesta época continuamos recebendo ajuda das Irmãs Franciscanas, dos Padres Orionitas, da Édila Provini e da D. Ivone.
Comunidade São Francisco de Assis
Quando começaram a negociar e ver a possibilidade de um terreno, fomos morar numa pracinha do bairro Braúnas, debaixo de lona também. Em Setembro/1990 a Prefeitura Municipal de Belo Horizonte providenciou uma área, no bairro Trevo. Nesta época houve a aproximação dos Padres Cavanis, que juntamente com as Irmãs Franciscanas, Padres Orionitas, Édila Provini e D. Ivone e todas as pessoas do Movimento, fizeram a romaria, cantando e rezando, até a “terra prometida”, no dia 03/10/1990: terreno destinado à criação da Comunidade São Francisco de Assis.
A princípio foram levantadas as barracas, feito banheiros comunitários. Água e energia elétrica eram fornecidas pelo Sr. Rodrigo, onde era efetuado o rateio do valor de cada conta entre as famílias. Não havia “gato” (furto de energia ou água). E sim a divisão por número de famílias! Foi um movimento bem organizado!
Dentro das barracas de lona
Dentro das barracas de lona, a iluminação era por meio de velas. E quem tinha melhor condição, tinha liquinho! Estudei anos sob luz de velas. Não tínhamos geladeira. Assim os alimentos e a comida estragavam com bastante facilidade. Aprendi que é melhor fazer pouco e mais vezes, para evitar o desperdício!
A água para o banho era esquentada no fogão de lenha (daqueles bem simples: feito direto no chão, com tijolos) e tomado de caneca, na bacia. Quando minha Mãe tinha dinheiro para passagem, eu e minha Irmã íamos de ônibus para a escola. Se tinha pouco dinheiro, andávamos até o bairro Braúnas para pegar o extinto ônibus “Cata-osso”, que era mais barato! E quando não tinha dinheiro, íamos a pé para a escola!
Em época de chuva, vocês não sabem o pavor da chuva de vento, medo de carregar a lona e molhar, estragar as poucas coisas adquiridas. Quando empossava água em cima da barraca de lona, fazíamos furos para a água não acumular, pesar e estragar a barraca.
A conquista da terra
De um modo democrático foi efetuado o sorteio dos lotes. Estes foram divididos, demarcados e sorteados. Cada chefe da família recebeu a sua respectiva planta para iniciar a construção. Assim, cada família estava liberada para ocupar o seu terreno. Mais uma vez, desmonta e monta barracas. Mas foi diferente: com o prazer da conquista da terra. Com a divisão dos lotes, também começou a divisão entre as pessoas; não havia mais a cozinha comunitária. Este individualismo se refletia não só na partilha dos alimentos, mas na pouca participação nas orações, terços, celebrações, missas e reuniões. Também houve a introdução de outras religiões e mais segregação.
Quando mudamos para a nossa casa de tijolo, a Copasa colocou hidrômetro e a Cemig instalou os postes nas ruas e colocou os padrões. Só a partir daí comecei a tomar banho de chuveiro elétrico. Nesta época eu já tinha uns 18 anos. Nossa, foi incrível! Mesmo com o barro e com a poeira, sentíamos estar no céu! Recebemos doações de materiais de construção diversos das Irmãs Franciscanas da Holanda.
Esperança
Em homenagem às Irmãs Franciscanas Penitentes Recoletinas que nos apoiaram e nos acompanharam durante todo o percurso e por ter recebido guarita na “Igrejinha” da Pampulha, aqui se chama Comunidade São Francisco de Assis. A Comunidade segue, mantendo viva a lembrança, a história da caminhada de luta, batalha, fé e oração. Cada pessoa que passa por uma experiência desta aprende a ser forte, a não desistir, a ser resistência! Também aprende a ter esperança, a ter fé em dias melhores!
Como nem tudo é perfeito, apareceram oportunistas! Conheço muitas pessoas que fizeram das ocupações uma profissão: jeito de ganhar dinheiro, porque invadem e vendem. No meu caso foi por necessidade! E até hoje minha Mãe mora no mesmo lugar. Eu só mudei, porque me casei em 2009, mas moro uma rua abaixo.
Não acho correto invadir terrenos, mas a sobrevivência fala mais alto. Tente se colocar na posição da minha Mãe:
- analfabeta,
- separada,
- não recebia pensão alimentícia,
- com 3 filhos para criar,
- foi despejada da casa que morava,
- não recebeu nenhuma indenização
- era mal remunerada.
- Com os filhos ainda em período escolar: tinha que comprar uniforme, comida e material escolar!
Olha: eu nunca repeti um ano, da 1ª série do Ensino Fundamental ao 3º ano do Ensino Médio. Nem mesmo quando eu não tinha residência fixa!
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