Sobre o excesso de frescura na criação dos filhos hoje em dia e a falácia do “ninguém morreu”.
Criação dos filhos e o mimimi
Muita vezes, quando vamos conversar sobre novas diretrizes que as modernas pediatria, nutrição e pedagogia recomendam para serem aplicadas à criação de uma criança, a gente escuta o seguinte comentário:
“No meu tempo não tinha nada disso e ninguém morreu, estamos todos aí, fortes, saudáveis, ótimos”.
Eis um argumento aparentemente definitivo, afinal, de fato, a criatura está na sua frente, viva.
Ou seja, apesar de:
- ter tomado refrigerante na mamadeira,
- andado no carro sem cadeirinha (aliás, sem nem usar cinto mesmo),
- visto mulher pelada na TV no programa do Gugu aos 5 anos,
- feito (ou recebido) bullying pesado com aquele amigo afeminado, gordo ou pobre,
- aprendido a andar de bicicleta sem capacete e sem cotoveleiras e
- nunca ter usado filtro solar na vida
Fulaninho está ali para lhe dizer: nada disso importa. Comigo foi assim.
EU sobrevivi.
E esse é o grande argumento dela para você parar de “chatices” com seu filho.
“Eu sofri, ele pode sofrer também. Faz bem para não ser mimado” – e ainda emendam: “essa geração de hoje em dia é muito fresca”.
De minha parte, acho que o Brasileiro em geral tem um severo problema para assimilar uma coisinha simples chamada “causa e consequência”.
Você tomou Coca-Cola na mamadeira e está vivo para contar?
Poxa, hoje vivemos uma epidemia de diabetes e obesidade. Será que esse treco aí de alimentação natural é frescura mesmo?
Você andava de carro sem cinto de segurança?
Nossa, mas após a lei da cadeirinha o número de crianças mortas em acidentes de trânsito diminuiu 23%. Será que usar bebê conforto é mesmo chilique?
Você adorava chamar seus amigos de viados, gordos e fracassados e não tinha nada de errado porque todo mundo dava risada?
Então, nunca uma geração de adultos foi tão deprimida quanto a de agora e o Brasil é um dos países que mais mata gays no mundo. Será que leis contra bullying são exageradas mesmo?
Você nunca passou um filtro solar para brincar na Praia?
Cara, o número de mortes por câncer de pele aumentou 55% nos últimos 10 anos. Será que comprar roupa com proteção UVA para um bebê é mesmo coisa de mãe fresca?
Causa e consequência.
Padrões não brotam do solo. Tudo vem de algum lugar.
Estamos aqui para provar que podemos ter sobrevivido à criação de antigamente, mas ela produziu alguns dos piores grupos de adultos que se tem notícia.
Vejo jovens e adultos que tiveram a tão admirada criação “roots”:
- apoiando ditadores e ditaduras (tanto de direita quanto de esquerda),
- vestindo capuzes pontudos e falando em racismo reverso (WTF),
- achando que feminismo é coisa de vagabunda de peito de fora,
- criticando minorias,
- matando mulheres a rodo e dizendo que feminicídio é bobeira,
- querendo porte de armas
- e discutindo se um quadro deveria ou não ser exposto uma galeria de arte;
- vejo gente achando que direitos humanos é palavrão,
- justiça social é socialismo,
- inclusão social é balela
- e que não existe machismo nem sociedade patriarcal
É tudo mimimi
Enquanto homens gozam em mulheres nos ônibus e a Associação de Psicólogos Cristãos pede (e consegue) autorização para tratar os gays como se doentes fossem.
É sério que vocês acham que isso não tem nada a ver com os valores de antes? Com a forma que fomos criados? Com uma criação omissa em ensinar diferenças, tolerância, sexualidade, nutrição?
Não venha me acusar de fresca quando digo que quero algo melhor que isso para meu filho.
Vejam, eu não julgo meus pais: eles fizeram o que podiam com a informação e recursos que tinham – e não por outra razão tenho a OBRIGAÇÃO de supera-los com o conhecimento ao qual tenho acesso hoje.
Fazer diferente seria ignorar a possibilidade de fazer melhor. E essa é a nossa obrigação sagrada: sermos melhores que aqueles que nos criaram.
Ter saudades de um passado que não era tão dourado assim só demonstra ignorância e medo. Eu não quero que meu filho tenha que viver num país em que gays podem ser “curados”. Quero que ele viva num mundo em que orientação sexual seja como ser destro ou canhoto: indiferente.
Então, meu colega, pode ser que nem você nem eu tenhamos morrido por causa da nossa criação, mas não me diga isso ignorando o fato de que até hoje muita gente paga – com a vida – o preço dos equívocos de ontem.
Ah. Caso digam:
“Hummm sei deste seu discurso ai, mas quero ver o que você vai fazer se seu filho for gay!”
Gente,