Outro ponto que precisa ser abordado é sobre onde estamos inseridas para discutir essas questões. Tanto no contexto de saúde suplementar (planos de saúde e assistência particular) quanto no SUS, a questão é fortemente ligada a fatores econômicos e fatores sociais. Os fatores econômicos já foram parcialmente discutidos. Dizem respeito aos médicos, que ganham mais e têm uma agenda mais confortável quando fazem mais cesáreas. O contexto socioeconômico e o Parto. Os fatores sociais e culturais são mais complexos.
Capítulo 5
O contexto socioeconômico e o Parto
Uma parcela de mulheres (ainda que minoritária) afirma preferir a cesárea agendada (mesmo antes de ter qualquer experiência de parto), e uma parte destas justifica essa preferência pela ansiedade quanto à dor, à expectativa e aos esforços físicos do trabalho de parto. Porém, estudos científicos demonstram que os principais problemas da mãe que se submeteu à cesárea (agendada ou não) no primeiro mês de vida do bebê são exatamente a dor e a limitação física impostas pela incisão cirúrgica.
Ou seja, há um julgamento equivocado de que a cesárea poupe dor e esforço. O que a cesárea poupa de dor em todo o período do trabalho de parto normal (que pode, se a mulher quiser, ser significativamente aliviado por analgesia adequada) é muito inferior à dor e à limitação pós-operatória que uma cirurgia abdominal causa por muitos dias.
Portanto, fica evidente que o “medo da dor e do parto” não é racional, não leva em conta e não compara a dor que cada tipo de parto causa. Esse medo talvez reflita um medo social e cultural da mulher contemporânea de uma dor mais simbólica do parto. Uma vez que os processos naturais do parto e nascimento envolvem aspectos de ansiedade complexos, como a perda da ilusão do controle (não há data nem hora definidos para ocorrer e a duração do trabalho de parto é imprevisível), o contato com o próprio corpo e com o próprio lado animal, sexual e instintivo (contraposto ao aspecto“asséptico, tecnológico e civilizado” do parto cirúrgico) e de como estes aspectos despertam, em última análise, o medo da morte.
Medo simbólico
Encarar esse lado, esse medo simbólico, é uma possibilidade que varia de pessoa pra pessoa. E uma mulher não é melhor ou pior do que outra por causa disso. Quero dizer é que não se pode julgar moralmente o fato de a mulher encarar ou não esse lado simbólico, primitivo e complexo, porque isso não é uma habilidade consciente, e, consequentemente, não é uma escolha.
Além disso, na cultura brasileira a cesárea é um símbolo de modernidade, tecnologia e status social e econômico. Se você cresceu vendo novelas no Brasil, você viu várias vezes as mulheres ricas marcando a cesárea e as pobres tendo seus filhos de parto normal, em geral sofrendo muito e desamparadas, por vezes na sarjeta. Na novela, as únicas que morrem no parto são as que tiveram parto normal. Isso fica introjetado em nossas mentes infantis e levamos pras nossas vidas adultas.
É bem possível encontrar mulheres que tiveram acesso à informação de qualidade (médicas inclusive!), sabem racionalmente que o parto normal é mais seguro, não têm qualquer indicação real de cesariana, não foram convencidas pelo(a) obstetra, mas ainda assim afirmam que preferem agendar a cirurgia.
- Por que elas fazem essa escolha?
- Quais as características da cesariana que a faz preferível para um grupo (pequeno, mas cada vez maior) de mulheres, que passam por cima de questão cruciais como os próprios riscos?
- Por que essas mulheres evitam esperar pelo trabalho de parto espontâneo e evitam o parto vaginal?
Esta pergunta ainda não está respondida. E este fenômeno, da cesárea a pedido materno, é um fenômeno mundial. Talvez tenha algum componente do medo simbólico, mas que essas mulheres não se dão conta. E talvez tenha raízes mais profundas, que dizem respeito ao modo de vida contemporâneo, à era da ansiedade, do consumo, do individualismo e da tecnologia.
A percepção da cesarea
Aqui no Brasil a cesárea não é percebida negativamente pela maioria das mulheres que passaram por ela, diferentemente de outras culturas. Um estudo científico americano, por exemplo, mostrou que as mulheres geralmente se sentiam menos satisfeitas com a experiência de parto quando não haviam conseguido ter um parto normal.
Estes símbolos ficam evidentes quando se analisa a via de parto, no Brasil, de acordo com fatores socioeconômicos, em que a renda, a escolaridade e o tipo de assistência à saúde influenciam marcadamente o tipo de parto que a mulher terá. O que é contraditório, no Brasil, é que o alto grau de escolaridade está mais associado a cesáreas eletivas, quando devia estar relacionado a maiores graus de informação técnica e científica acerca das vantagens e riscos das vias de parto e consequentemente a maiores índices de parto normal (como o que ocorre em países como Inglaterra e Holanda).
Esta contradição possivelmente reflete o desrespeito ou o desconhecimento das escolhas das mulheres, especialmente na saúde suplementar (planos e particular). E reflete a relação entre maior escolaridade e renda, o que afeta o tipo de assistência à saúde que a mulher tem (se privada ou pública).
Tendo maior renda, em geral a mulher é assistida pela saúde privada e neste contexto, como já disse, há fortes incentivos econômicos e de conveniência para que os médicos favoreçam procedimentos cirúrgicos agendados, uma vez que se pode ganhar mais dinheiro realizando diversas cesáreas no mesmo período em que se assistiria somente um parto normal.
Saúde pública
Já no contexto de saúde pública, a questão é completamente diferente. A violência obstétrica é um problema muito mais grave do que na saúde suplementar, apesar do fato de um médico realizar uma cesariana sem indicação em uma mulher que deseja o parto normal poder ser considerado violência obstétrica.
No SUS, muitos hospitais dão uma assistência ruim ao trabalho de parto normal. As mulheres são deixadas com dor ou com analgesia inadequada, que lhes tira os movimentos e as coloca em posição passiva no trabalho de parto. Ficam desacompanhadas, com fome, por vezes amarradas, deitadas e com as pernas pra cima em posição ginecológica (que é uma péssima posição para parir e para a saúde do períneo, mas é confortável para o médico), desamparadas, acuadas, elas aguardam o parto em grande sofrimento.
A grande maioria dos hospitais públicos não oferece banheiras, nem a companhia de doulas, que são bons recursos para lidar com a dor, de acordo com estudos científicos recentes. Nem cadeira para parto de cócoras. E por aí vai.
Neste contexto, a cesárea às vezes poupa as mulheres de um estresse psicológico intenso, em um momento de muita vulnerabilidade. Um corte cirúrgico às vezes dói e imobiliza menos do que ser humilhada e maltratada no momento do parto. Há um documentário extenso e emocionante sobre o tema, que se chama “Violência Obstétrica – A Voz das Brasileiras”.
Impactos
Portanto, dependendo do contexto socioeconômico e cultural, há impactos diferentes da assistência ao parto na preferência ou escolha da mulher pela via de parto. Curiosamente, ainda assim alguns estudos demonstram que a maior parte das mulheres (também em torno de 80%, como as mulheres da saúde suplementar) assistidas pela saúde pública do Brasil prefere o parto vaginal. Ou seja, também há um excesso de cesarianas no SUS (em torno de 35%), mas ele é muito inferior ao excesso de cesarianas nas redes privadas (em torno de 80%). Por isso, reafirmo que, no contexto de saúde pública, a questão da violência obstétrica é ainda mais preocupante do que a do excesso de cesáreas.
Ambas as questões precisam ser discutidas com o devido cuidado.
Fontes:
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- Maternal and infant outcome after caesarean section without recorded medical indication: findings from a Swedish case-control study. Karlström A, Lindgren H, Hildingsson I. BJOG. 2013 Mar;120(4):479-86; discussion 486. doi: 10.1111/1471-0528.12129. Epub 2013 Jan 15