A geração do quarto: Esta expressão foi usada por mim pela primeira vez em 2015. O título deste artigo é título de um livro homônimo, escrito por mim (no prelo), que será publicado em 2019. Nesse sentido, a expressão geração do quarto não se relaciona (in)diretamente com outras expressões as quais tenho ouvido falar que utilizam a palavra “quarto” associada à palavra “filhos”, porém trazendo abordagem diversa da minha e portanto seguindo outra linha de raciocínio que não a por mim utilizada.
A geração do quarto:
quando crianças e adolescentes nos ensinam a amar
Hugo Monteiro Ferreira
[email protected]
Os nossos filhos e as nossas filhas, mesmo que estejam dentro de casa, não estão necessariamente bem e nós, mesmo que façamos de conta que estamos, também não estamos. De 2015 a 2017, entrevistei 3315 pessoas, crianças e adolescentes, meninos e meninas, advindos/as das mais diversas regiões, estados, cidades, classes sociais e econômicas do Brasil, todos/as, sem exceção, disseram-me que:
“andam sozinhos/as dentro de suas casas”
A solidão sob o teto onde moram é uma espécie de mandrágora que cresce em meio à dor e ao sofrimento de nosso/as infantes e de nós mesmos/as.
Ainda não nos demos conta de maneira lúcida, porque ainda queremos fingir que as coisas estão “tranquilas” e “harmoniosas”. Porém presenciamos, conscientes ou inconscientes, a emergência de uma geração adoecida e adoecedora. Uma geração que não sabe lidar com as frustrações de forma saudável, visto que entende a frustração como um elemento nocivo a sua condição humana. A geração do quarto ou a geração online não aprendeu a construir proteções emocionais, menos porque não as tenha desejado e mais porque não as ensinamos e as aprendemos nós mesmos/as.
Ignoramos como lidar com:
- as ansiedades,
- as angústias,
- as rupturas afetivas,
- os medos,
- os desassossegos cotidianos,
- as intempéries,
- as rejeições,
- as competições,
- as ameaças e,
- ao mesmo tempo, os seus duplos, isto é, os seus inversos, os seus contrários, os seus antônimos mais diretos e imediatos.
Fazemos, todos nós, parte de uma relação intergeracional em que tanto as unidades geracionais (pessoas) quanto as conexões geracionais (inter-relações entre pessoas) põem em causa a nossa posição geracional (geração no sentido mais comum). Somos a geração das insuficiências latentes e dos descalabros falados também de modo corpóreo e não aquietados na mente. Uma geração de mente inquieta e corpo marcado. A geração do quarto.
Doentes
Não são necessariamente as infâncias e as juventudes que estão doentes, como teimam em afirmar alguns e algumas. Mas, talvez, somos nós que estejamos doentes. Adultos/as que não entenderam qual o seu papel e quais as suas funções nesse mundo que também não nos poupa, nem nos acolhe livremente e de modo sincero. É evidente que crianças, adolescentes e jovens estão fragilizados/as emocionalmente, basta que leiamos os dados apresentados pela OMS[1] em relação a:
- doenças das emoções,
- transtornos mentais,
- síndromes psíquicas,
- traumas psicológicos,
- comportamentos lesivos à vida, com ou sem intenção de morte.
Mas a questão é outra, é mais ampla, não se reduz a categorizar uma época e um espaço, um grupo etário, simplesmente.
[1] Informações sobre a OMS – Organização Mundial de Saúde – https://www.who.int/eportuguese/countries/bra/pt/
Geração
A palavra geração não deve ser entendida exclusivamente como uma divisão cronológica que, de um lado põe aqueles/as que já são adultos/as e do outro, aqueles/as que ainda não são, porque possuem menos idade. Geração é conceito trazido a público pelo sociólogo húngaro Karl Mannheim (1893-1947)[1] e que implica não somente uma condição etária, mas uma relação entre a idade e os condicionantes sociais e históricos que a influenciam. Pertencer a uma geração é, de certa maneira, relacionar-se, a partir de sua base etária, com elementos culturais que estão são seu redor e por você também é construído. Nesse sentido, ao contrário do que muitos querem fazer crer, uma geração não é um bloco de idade, mas um modo como uma dada idade se relaciona com elementos que estão presentes em tempos e espaços individuais e coletivos.
[1] Karl Mannheim (Budapeste, 27 de Março de 1893 — Londres, 9 de Janeiro de 1947) foi um sociólogo judeu nascido na Hungria. Iniciou seus estudos de filosofia e sociologia em Budapeste participando de um grupo de estudos coordenado por Georg Lukács. Estudou também em Berlim — onde ouviu as preleções de Georg Simmel — e Paris. Em Heidelberg, onde Mannheim foi aluno do sociólogo Alfred Weber, irmão de Max Weber, tornou-se privatdozent a partir de 1920. Foi professor extraordinário de sociologia em Frankfurt a partir de 1934. Em 1935, com a ascensão do nazismo Mannheim deixou a Alemanha para tornar-se professor da London School of Economics.
A geração do quarto
Em outras palavras, não são só nossos/as filhos e filhas que estão dentro dos seus quartos> Nós, embora não tenhamos nos dado conta disso, também estamos, mesmo que simbolicamente, dentro dos quartos, aprisionados/as em modelos educacionais e familiares falhos. Eis talvez a questão central desse texto.
A nossa permanência simbólica no quarto dos/as nossos/as filhos/as se dá:
- menos pela presença e mais pela ausência.
- menos pela conversa e mais pelos silêncios.
- mais pela nossa forma egocêntrica de não sabermos como dizer as coisas “genuínas” (reais),
Porque acreditamos que as coisas mascaradas (ilusórias) são mais fáceis e simples de serem ensinadas para os/as nossos/as meninos/as. Nós presenciamos, atônitos/as, a solidão de nossas garotas e nossos garotos e fazemos um jogo de venda nos olhos, porque:
- é difícil enfrentar a educação de um humano,
- é difícil abrir mão de uma série de “cochilos” nossos para cuidar dos “cochilos” dos outros, do outro, da outra, das crianças e dos/as adolescentes e das juventudes sob as orientações.
Estou dizendo que não queremos – ou não sabemos como fazer – experimentar a vida das infâncias, abrindo mão, um pouco, em parte, da vida da adultez. Ora porque acreditamos que a primeira é inferior à segunda, ora porque realmente caímos no conto do vigário de que ser adulto é a grande sensação do trajeto antropológico humano e que às infâncias não cabe senão a ludicidade:
- desmerecida de seriedade,
- de valiosidade,
- de qualidade social e funcional no mundo das finanças de Wall Street.
Diferente do que pensamos e sentimos, o jeito consumista e planejado que organizamos a vida de nossas crianças e adolescentes tem sido um fiasco latejante e um fracasso explícito.
Escape
A geração do quarto usa a internet como cano de escape, porque solitária que está, faz das redes sociais digitais um mundo no qual sua voz pode ser ouvida e suas maneiras podem ser melhor assimiladas.
“Prefiro ficar aqui o dia todo e só sair, se sair, para comer. Fico na minha. No meu canto. De boas.”
Não incomodar a vida dos que estão fora do quarto é um dos objetivos daqueles/as que no quarto se isolam, visto que alimentar a subjetividade é uma das possibilidades de não morrer de inanição de amor. “Não é que ele não me ama. É que o amor dele é sem graça. Mas é meu pai, né?” O amor que incomoda não é amor, é uma liga de controle, uma lógica de dominação.
Os pais que amam entendem que o amor tem a ver com o respeito à liberdade do outro e sabe que liberdade não se confunde com a permissividade e nem com a maturidade trocada. A liberdade é a palavra-chave na vida do quarto, porque:
- impede as portas e os silenciamentos,
- abre as escutas e evoca os acolhimentos.
Ser livre é ser cuidado. Diferente de ser jogado ao convívio com os espectros digitais enquanto os adultos se refazem dos dias difíceis do mundo globalizado. É imperioso que se junte dentro das casas aqueles que nelas moram. E se juntem para fazer o que as máquinas jamais farão: encontros emocionais.
Convém evocar a pasmaceira
Numa época e num tempo em que tudo é ligeiro, convém evocar a pasmaceira e a lentidão e decidir, de caso pensado, não usar o microondas em nome do amor pelos/as seus e suas. A geração do quarto não deve ser classificada como aquela que não deu certo, ou aquela que fracassou, porém como a que adverte pais e mães sobre o que implica educar e o que implica cuidar verdadeiramente. Tarefa demasiadamente difícil e complexa para quem, adoecido, insiste em deixar legados. Talvez nem todo mundo devesse ter filhos/as, mas se o tem, prepare-se para dormir menos e aprender a abnegar, pôr o outro a sua frente e querer que a felicidade seja dele/dela antes de qualquer coisa.
Dentro dos quartos
Dentro dos quartos, experimentando a dor e o sofrimento, nossas/nossos meninas e meninos nos oportunizam a experiência do amor, visto que nessa hecatombe na qual nos encontramos, é urgente que façamos do diálogo, da compreensão, da não-comparação, da compaixão, da empatia, da amorosidade, nossas estratégias de educação. Não quero fazer abstração de palavras e nem promover jogos semânticos, mas estou insistindo na tese de que aqueles que estão no quarto nos clamam para que saiamos dele, acompanhados por eles e com eles, sem que tenhamos que abrir as portas, por força, distração, investigação ou traição.
A geração do quarto nos ensina a amar na medida em que nos faz pensar:
Estamos cuidando de nossas crianças e de nossas juventudes sem colocá-las sob as ordens do que nem é verdadeiro e nem é legítimo?
Ou seja:
- Estamos experimentando a vida ao lado deles e delas,
- procurando deixá-los/as viver,
- mas sem deixá-los sem vínculos e sem ausência de referências?
- Queremos filhos e filhas saudáveis, mas nós, adultos/as, estamos saudáveis?
- Ou adoecidos/as, fingimos que está tudo bem e tentamos mascarar o que de fato, não se mascara: a relação entre quem geramos e de quem cuidamos?
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