A criança que estava no museu, acusado por muitos e muitas de ter realizado uma exposição ilegal, pois infringiu o ECA[1], tem nome, sobrenome, idade, etnia, gosto, desgosto, impressão, intenção, esperança, raiva, alegria, amigos, desafetos, interesses, desinteresses.
A criança, ainda que muitos e muitas dos que acusam o museu não saibam quem é, e nem quem vem a ser, é um ser humano, repleto de sonhos e de medos, igualzinho a todos nós (tanto aqueles e aquelas que atacam o museu quanto aqueles e aquelas que defendem o museu). Raro mesmo, nessa história polêmica, é encontrar quem tenha “ouvido” a opinião da menina que tocou no corpo do artista. Pelo que li sobre a situação, li bastante coisa em jornais e em sites, em blogs; vi muita coisa em vlogs, em canais do YouTuber, e nada, nada mesmo, fazia alusão ao pensamento e ao sentimento da criança. Ela era referida como a “menina”.
[1] Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei 8069, 13 de julho de 1990.
A criança e o museu: ouvimos as crianças?
- “A criança – me disse uma senhora que opinava numa matéria de jornal sobre o episódio – não tem condições de saber o que é certo, o que é errado, o que é bom, o que é ruim. Ela não compreende.”.
- Um senhor, esse fazendo comentário em uma matéria de jornal que tratava sobre a temática, explicava: “A criança é tola, é boba, é ingênua. Esse pedófilo deve apodrecer na cadeia”.
- Um jovem explicava em um site sobre notícia de última hora “Esse museu só fez essa aberração porque era com uma criança. Uma criança não consegue separar o certo do errado, o melhor do pior, o que é de Deus e o que é do demônio”.
As três falas, de pessoas diferentes, mas de pessoas crentes na sua condição de analisar a inteligência da criança e sua incapacidade diante do que lhe aconteceu ou mesmo acontece, sinalizam uma crença quase geral de que meninas e meninos não são capazes de discernir o que devem ou não devem fazer.
Infâncias
No entanto, essa crença generalista e pouco fundamentada é evidentemente uma crença preconceituosa em relação às infâncias. Os estudos da criança e a sociologia da infância[2], assim como os estudos sobre desenvolvimento psicológico das crianças e dos adolescentes, há muito, atestam que garotas e garotos são críticos, criativos e cuidadosos, portanto inteligentes e capazes de saberem aquilo que é bom para si e aquilo que não é bom para si, embora, muitas vezes, em razão de sua condição humana, possa, como qualquer pessoa inexperiente, ser enganado/a, ser ludibriado/a, ser levado/a a crer numa verdade que, de verdade, é falsa.
No caso do museu, o que mais me espantou de tudo o que li, foi a completa indiferença dos adultos à criança envolvida na polêmica. De certo modo, quem filmou o que se passou no museu e tornou público, no meu ver, ignorou por complexo a exposição à que a menina foi submetida e quis, de fato, denunciar, o que julgou crime de pedofilia. Não houve cuidado em preservar a imagem da criança.
[2] Aportes teóricos utilizados pelos pesquisadores e pelas pesquisadoras de áreas da educação, da psicologia, de sociologia, de história, de geografia, de antropologia. No nosso caso, ajudam nas reflexões sobre o que estudamos em nossas atividades acadêmicas.
Adultismo
Não vou entrar no mérito se o que aconteceu naquele museu foi ou não foi crime de pedofilia. As investigações que estão ocorrendo, no âmbito policial e jurídico, poderão dizer de modo técnico o que se deu. O que eu quero chamar atenção aqui é sobre o adultismo que predominou nessa situação. O adultismo é a doutrina do adulto ou a doutrina da adultez. Em outras palavras, a vida é compreendida e explicada sob a lógica exclusiva dos valores adultos, excluindo qualquer possibilidade de se compreender e explicar a vida pela ótica das infâncias. A criança que entrou naquele museu e tocou no corpo do artista nu deve ser respeitada. Para que o respeito lhe aconteça de modo genuíno, é necessário que as pessoas procurem ouvir o que aquela criança sentiu e pensou, viu e percebeu, analisou e concluiu, entendeu e refletiu.
A criança e o museu
À que conclusão terá chegado a criança quando ela experimentou entrar no museu?, caminhar com as pessoas pelo ambiente?, tocar, orientada por sua mãe, no corpo de um artista exposto ao público que assistia a uma performance? Alguém já parou para pensar que a criança pode não ter gostado?, pode não ter se importado com a nudez do artista?, pode não ter se interessado pelo museu?, pode ter achado “legal” ter ido com a mãe a um lugar no qual tinham muitas pessoas olhando uma outra pessoa se apresentando? De fato, o que terá sentido aquela menininha naquele dia? Já paramos para analisar que, ainda que estejamos certos ou errados sobre a situação polêmica, ainda que estejamos falando sobre ECA de lá para cá e de cá para lá, a criança, a mais importante figura dessa situação, foi a única que não foi ouvida?
Reflexão
Como eu disse antes, não pretendo afirmar ou negar se houve crime de pedofilia, porque entendo que as entidades competentes estão, a essa altura, investigando e darão, muito em breve, um parecer técnico sobre a situação. Mas, em todo caso, entendo que um museu, em qualquer parte do mundo democrático, é espaço e tempo de arte e que arte é por natureza uma criação humana feita para promover reflexão. Ela não é feita para legislar e nem para comprovar teses científicas, porém para possibilitar a quem a contempla um despertar sobre a vida.
Sou escritor de ficção. Escrevo para promover reflexão sobre o real e a realidade. Pelo que investigo, dedico minha vida profissional a trabalhar com estudos sobre crianças e adolescentes, coordenei a primeira especialização em direitos da criança e do adolescente, ministro palestra e curso sobre sofrimento de meninos e meninas e posso dizer que se a sociedade continuar tratando crianças e adolescentes como se elas e eles fossem idiotas, não passaremos de bárbaros.
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