Queria convidar vocês a uma reflexão a partir daquele post do pai/mãe transexual que decidiu registrar o filho sem identificação de sexo na certidão de nascimento, para que ele decida com qual sexo se identifica mais tarde, porque eu fiquei bem surpresa com a quantidade de comentários negativos e críticas.
Gostaria de dizer que eu tenho dois filhos. A Joana, de 5 anos e meio, e o Daniel, de 2 anos e 3 meses. A Joana nasceu menina e se identifica como menina. Aliás, bem no espectro do estereótipo da menininha! Já o Daniel não tem a menor ideia se ele é um menino ou uma menina. Mas não, esse não é um post baphônico, revelador, tipo: o dia em que eu descobri que meu filho era transexual. Ele não sabe se é menino ou menina, simplesmente, porque ele ainda não cresceu o suficiente pra saber.
Identificação de sexo
Claro que, principalmente tendo nascido homem, ele já tem a percepção do próprio órgão sexual. Ele sabe que tem pinto. Ele sabe que o pai tem pinto. Ele sabe que eu tenho mamá e o pai não. Mas ele percebe que ele também tem peito. E ele acha que, provavelmente, o peito dele também pode virar um mamá quando ele crescer. Ele sabe que existe uma coisa que chama perereca, mas como a tal da perereca é uma cavidade e não um objeto externo (como o pinto), não tenho certeza de que ele saiba do que se trata. Ele tem noções sobre identificação de sexo.
Então além de saber que tem pinto e peito, e de cogitar que terá mamá, ele também acha que tem perereca. Como ainda é muito mimético, quando a irmã diz que vai limpar a perereca, ele diz: limpá peleca! A irmã morre de rir e fala:
Dandan, você não tem perereca, você tem pinto!
E ele responde:
Pinto, peleca!
Normalidade
Tudo isso é absolutamente normal. Até cerca de 3 anos de idade, quando especialistas (educadores, psicólogos) entendem que a criança começa a ter consciência de que as pessoas se identificam por gênero, ou seja, de que no mundo há:
- homens e mulheres,
- meninos e meninas.
E, só a partir daí, a criança vai poder entender quem ela é, em termos de gênero.
Antes ela já tinha uma série de percepções. E eu faço questão que meus filhos tenham essa percepção dos corpos, por isso nunca me importei que eles nos vejam nus. Mas só por volta de 3 anos eles vão começar a ter a capacidade intelectual de fazer abstrações e generalizações. Ser capazes de ir do geral ao particular e vice-versa, ou seja, dizer:
Todas essas pessoas que têm tais características são homens, ou são mulheres, portanto eu sou menino, ou sou menina.
Então, mesmo que você vista sua filha de glitter dourado e rosa desde o nascimento, ela só vai ter consciência da própria identidade sexual nessa idade, e isso é um movimento pessoal, interno.
Sabe aquela fase da vergonha, em que seu filho pergunta pra todo mundo se tem pinto ou perereca? É essa fase. Eu me lembro que uma vez no táxi a minha filha perguntou pro motorista:
Você tem pinto? você usa cueca? Ah, então você é homem!
Fofo, né? Só que eu queria pular da janela do carro de vergonha…
Generalização
A tal generalização que as crianças fazem costuma começar a partir dos corpos, do biológico:
homens tem pinto, mulheres têm perereca.
Com o tempo, essa observação vai se incrementando. O papai, o moço da pipoca, o meu avô, o motorista do táxi, têm barba, têm pomo de Adão, não têm peito, têm muitos cabelos nos braços, então provavelmente eles têm pinto. Então provavelmente eles são homens.
Deixa eu checar? Você tem pinto? Sim? Ah, tô certo!!!!! Hehehehe.
E a mesma coisa eles fazem com as mulheres e assim vão constituindo grupos em que as pessoas se classificam. E com o tempo eles começam a perceber também que mulheres usam maquiagem, vestidos, saltos altos, costumam ter cabelos compridos, e homens vestem calças, costumam usar cabelos curtos, não costumam pintar as unhas, etc… E é só com todas essas percepções consolidadas que a criança vai poder dizer: olha, eu tenho um pinto, eu pertenço ao grupo dos homens, então eu sou um menino, e, sendo menino, eu vou vestir boné azul, bermuda, brincar de carrinho, e não vou me vestir de princesa e usar tiara.
(Não quero ficar aqui alimentando estereótipos, o que quero dizer é apenas que a criança se alimenta de estereótipos e referências culturais de gênero para constituir a sua própria identidade de gênero).
Meninos e meninas
Meu filho, o Daniel, ainda não chegou nessa idade. Então ele usa roupinhas de menino, boné de monstro, mas também usa tiaras de princesa, vestidos, usa batom. Isso porque aqueles objetos pra ele não têm nenhuma relação com a afirmação de identidade. São só objetos, lúdicos, que ele está experimentando e explorando.
Agora imaginem como é para uma criança, de apenas 3 anos de idade, que intuitiva e intelectualmente, tenta fazer essas classificações por grupos e não consegue. Ou seja, ela criou na cabeça dela o primeiro grupinho: pessoas que têm perereca são mulheres, ou meninas, e pessoas que têm pinto são homens, ou meninos. E, portanto, tendo pinto, eu deveria não querer usar vestidos e maquiagens, mas não, eu quero, porque alguma coisa aqui dentro me diz que tem algo “errado” nessa generalização, porque eu não sou um menino, eu sou uma menina, apesar desse pinto pendurado no meio da minha perna.
Tentem apenas imaginar o sofrimento de uma criança ao se descobrir “errada” aos 3 anos de idade. E do esforço social que é apagar da cabeça dessa pessoa de que ela veio “errada” e que, na verdade, tá tudo certo. Que ela pode ser quem ela é. Foi isso que o pai/mãe daquele bebê viveu. Eu digo pai/mãe, porque as matérias que eu li não deixaram claro pra mim se é um homem que nasceu biologicamente uma mulher ou o contrário. Mas, enfim, essa pessoa que agora tem um filho passou por isso e, certamente, sabe do peso que os símbolos sociais têm nesse processo de aceitação da própria identidade de gênero, quando ela é divergente do padrão.
E, pelo que eu entendi, embora ele queira que o próprio filho, ou filha, tenha essa liberdade de escolha, não é o mais provável que por ele ser transexual, que o rebento também o seja. Mas o filho de uma outra pessoa será. E seria lindo que o filho dessa outra pessoa, que pode inclusive ser o meu, quando lá com seus 3, 4 anos de idade estiver se vestindo de rosa, com tiaras e batons, tentando gritar pro mundo que é, na verdade, uma menina, não tivesse um documento que diga a ele, categoricamente:
nãnãnã, tá enganado! Você certamente é um menino. Tá escrito aqui! Nasceu com bagos! Menino!
Leia também:
Um ser estranho – transexualidade – parte 1