Um pedacinho da história da padê Julia Dias e a descoberta da Diabetes Mellitus do filho.
Bonequinho doce
Tive meu primeiro filho em 2009. Felipe, nasceu trazendo uma alegria indescritível para minha vida. Trazendo VIDA. Na época ainda trabalha com crianças doentes. Percebi que não conseguiria conciliar os cuidados e a tranquilidade que precisaria para cuidar dele com a tensão e a tristeza dos CTIs pediátricos. Olhava para aquelas mães e ficava imaginando como minha vida era totalmente diferente da vida delas. Como minha rotina era leve e alegre. Tentava imaginar de onde conseguiam tirar tanta força pra enfrentar tantos desafios. Ficava admirada. Mas decidi que nunca mais entraria em um CTI infantil. Dois anos depois, meu bonequinho doce nasceu.
André sempre foi a criança mais linda que eu já vi na vida. Parecia ter sido desenhado a mão. Lembro-me de várias vezes ouvir meu marido comentando que achava André tão bonito e perfeito que tinha até medo que alguma coisa acontecesse com ele. Que alguma imperfeição ele tinha que ter. Felipe e André cresceram e se desenvolveram muito bem. Eram fortes e quase nunca adoeciam.
Bebendo muita água
Pouco antes das férias de dezembro do ano passado a professora do André veio comentar que ele estava pedindo água constantemente. Não dei muito importância porque já era verão, estava um calor insuportável e o menino não parava quieto. Mas fiquei incomodada quando ela falou que, apesar do calor, ele era a única criança da sala que bebia água o tempo todo. Só armazenei a informação…
Nesta mesma semana começamos a perceber que tínhamos que trocar a fralda do André a cada 2 horas ou ela acabava vazando. Durante a madrugada trocávamos duas vezes. Mesmo assim ele acordava encharcado. Eu sempre achava que estava fazendo muito calor e que como ele estava bebendo MUITA água era normal que estivesse urinando tanto.
Ele também começou a ficar mais molinho, desanimado. Só queria ficar mais deitadinho.
“Gente, com o calor que está fazendo, até eu vou evitar me mexer”, eu pensava.
Diabetes Mellitus tipo 1
A situação foi ficando mais estranha. No último dia de aula não teve mais como negar que alguma coisa estava errada. André não brincou um minuto. Ficou o dia todo andando atrás da gente com o copo de água na mão. Chorava enlouquecidamente quando a água acabava. Sempre queria mais. Eram 3 copos cheios a cada 5 minutos.
Ligamos para a pediatra que pediu alguns exames. No fundo a gente já imaginava. No dia 13 de dezembro, meu bebê, meu bonequinho doce, de um ano e nove meses foi diagnosticado com Diabetes Mellitus tipo 1 e isso mudaria totalmente nossa vida.
André já estava com cetoacidose, complicação aguda da doença, e precisou ficar alguns dias no CTI. Em um dos dias de internação percebi que, de repente, eu seria mais uma daquelas mães que teria que arrumar forças de não sei onde para enfrentar toda rotina nova com aquela doença.
Glicose
Quando pensamos na rotina de uma criança com Diabetes Mellitus imaginamos as dificuldades e as “vontades” que ela poderá passar ao longo da vida. E, por causa disso, escutamos muitas palavras de conforto como:
“Hoje em dia tem tudo diet.”
“Com os novos tratamentos dá até pra comer de tudo, inclusive doce.”
“Hoje dá pra ter uma vida normal.”
Não, não dá! Não dá porque a alimentação é o menor dos problemas de uma criança diabética.
A glicose alta (de uma forma bem geral, acima de 130mg/dL) traz problemas em longo prazo, e a glicose baixa (abaixo de 70mg/dL) traz problemas em curto prazo.
A hiperglicemia constante (glicose alta) pode trazer problemas renais, cegueira, amputações e mais todas aquelas complicações da doença que a gente já ouviu falar.
A hipoglicemia (glicose baixa) numa criança da idade do André que ainda está na fase de desenvolvimento do sistema nervoso central, pode trazer complicações nas funções neurocognitivas (retardo mental, problemas de aprendizagem e concentração, etc).
Rotina
Vivemos uma rotina de tentar sempre equilibrar a glicemia do André dentro desses valores tentando imitar o funcionamento perfeito do nosso corpo. E isso é ESTRESSANTE DEMAIS, é trabalhoso demais.
São, pelo menos, 12 picadinhas no dedo (a cada 2 horas) e 6 aplicações de insulina. O grande número de picadinhas ainda é necessário porque André não consegue identificar e falar com a gente quando está passando mal e, como tem o sistema nervoso ainda bem imaturo, nem sempre seu corpinho consegue dar sinal de que algo não está bem. Já identificamos glicemias tão baixas que ele poderia ter tido uma convulsão ou ter entrado em coma em poucos segundos.
Escola
André não pode comer nada sem contarmos a quantidade de carboidrato que ele está ingerindo. Faz parte do tratamento dele. Na escola tento mandar exatamente as mesmas coisas que as outras crianças estão comento, só que na versão diet.
Todos os dias, saio às 10 horas da manhã do trabalho para ir até lá aplicar a insulina. Muitas vezes em outros horários também porque ele passa mal. Deixei na sala de aula algumas orientações para as professoras, o telefone do SAMU destacado e uma injeção de Glucagon na geladeira da cantina, caso ele fique inconsciente. Meu coração dispara com cada telefonema que recebo e só fico tranquila quando vou buscá-lo na escola.
Madrugadas
Durante a madrugada temos que levantar a cada 2 horas para medir a glicemia. É o horário mais perigoso porque ele está dormindo e não dá nenhum sinal que está passando mal. Todas as vezes que levanto fico pensando se não deveria ter levantado alguns minutinhos antes só por segurança. É um medo sem fim.
A liberdade é uma das coisas mais importantes para o ser humano e realmente só reparamos no bem que ela nos faz quando a perdemos. Talvez pelo pouco tempo de diagnóstico ou pela pouca idade do André isso ainda vai melhorar, mas hoje sinto falta de poder sair com meus filhos sem ter que planejar o horário, o tipo de refeição que eles terão e o quanto de carboidrato que André poderá comer. Sinto falta de dormir uma noite inteira sem ter que levantar a cada 2 horas e sem ter medo que meu filho não acorde por causa de uma hipoglicemia despercebida. Sinto medo de imaginar que a cada hipoglicemia severa que ele tem, um pedacinho dele tenha ido embora. Que a rotina de exames e picadas possa transformá-lo numa criança diferente do que ele é hoje.
Ainda choro muito. Em alguns momentos simplesmente não adianta pensar que tem coisas piores, que o tratamento já está muito mais evoluído e que ele tem tudo para ser uma criança normal, ter uma vida saudável. Inexplicavelmente a tristeza vem… Mas também já estamos conseguindo comemorar algumas conquistas como os bons resultados nos últimos exames, a boa adaptação de bomba de insulina, as receitas diets das coisas que ele mais gosta e que vão dando certo (Danoninho, iogurtes, bolos, pirulitos…). Ainda estamos nos acostumando com a ideia, adaptando nossa rotina e vivendo um dia de cada vez.
Tratamento para Diabetes Mellitus
Em relação ao custo do tratamento do André, hoje ainda arcamos com quase tudo, mas já entramos com um processo administrativo para conseguir os insumos para um tratamento mais adequado que irá diminuir o risco das complicações e trará maior qualidade de vida para a família inteira.
O SUS oferece um número bastante reduzido de variedade de insulina e, como as pessoas não são iguais, quem não se adapta a nenhuma delas fica sem. Também observamos incoerência no que é preconizado pelos próprios profissionais de saúde do Sistema em relação ao que é oferecido na rede, como a recomendação de, NO MÍNIMO, 6 exames de ponta de dedos por dia (pelo menos um antes das 3 principais refeições e outro duas horas após) e a disponibilização diária de apenas 2 fitas para a realização do exame (5, caso seja muito bem justificado pelo médico).
Nenhum sistema de infusão de insulina diferente da seringa é oferecido, nem mesmo as agulhas pequenas para o uso em crianças. Qualquer necessidade especial do paciente, mesmo devidamente justificada pelos profissionais do SUS, gera uma longa espera nos processos administrativos. Bom, pelo menos essa é a realidade de Nova Lima e, pelo que escuto de outras mamães pâncreas, é a realidade de outras cidades também.
André, meu bonequinho doce, é uma das crianças mais felizes que eu conheço e acho que no fundo é só isso que importa. Toda nossa luta é para garantir que ele cresça, juntamente com o irmão, da forma mais saudável possível e que tenha todas as oportunidades do mundo.
Julia Dias
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