Minha mãe perdeu o pai para o câncer quando tinha apenas 5 anos. Ela chamava-se Márcia, caçula de 5 irmãos, em um dia 26 de dezembro, depois de passar a noite de Natal dormindo no pé da cama do hospital, ela perdeu o pai enquanto esperava por uma bicicleta que o Papai Noel traria…
Ela era especial!
Não só para mim, meu pai e meus dois irmãos, mas para todos que a conheceram, seja por um minuto ou pela vida toda. Não media esforços para ajudar quem precisasse, para fazer o bem, doava-se por inteiro. Mãe sempre presente, exercia com maestria esse que sempre foi seu papel principal. E era igualmente encantadora como filha, esposa, tia, amiga, irmã…
Câncer
A herança genética não perdoa e em meados de 1995 veio a bomba: câncer de mama. Mastectomia total com esvaziamento axilar, ciclos de quimioterapia, muito mal estar, enjoo, vômito, queda de cabelo e ela sempre confiante. Passavam os 3 primeiros dias após a aplicação e ela já estava sorrindo, juntando forças para seguir em frente. Foram meses de dor, insegurança, angústia, ansiedade. E vi minha mãe passar por tudo aquilo com fé, dignidade, esperança e, sempre que possível, um sorriso no rosto. Novos exames e nenhum sinal do câncer. Festejamos e ela continuou sendo acompanhada, fazendo exames regulares e tomando medicação via oral por 5 anos. Só então a palavra final: cura! Ufa, que alívio! Vencemos essa, viramos o jogo. Não que ela fosse se descuidar ou abandonar os médicos e os exames de rotina, mas voltamos à vida!
Mastectomia preventiva
Na minha cabeça, durante todo esse período, só passava uma coisa: mastectomia dupla preventiva, ou seja, retirada de todo o tecido mamário ainda saudável, com o objetivo de prevenir futuro câncer. Todos com quem conversava me achavam louca, inclusive minha mãe que me dizia ser muito nova para uma decisão dessas. Fui desencorajada, inclusive, por médicos e acabei cedendo.
Preparativos para o casamento
Minha mãe sempre foi festeira, adorava comemorar e, quando contei que eu e o Bruno resolvemos nos casar, ela foi a primeira a incentivar, me ajudou a marcar a data na igreja, reservou buffet e resolveu que esse momento não poderia passar sem uma festa de noivado! Sim, e comemoramos o noivado como manda a tradição, rodeados de familiares e amigos e com pedido oficial do noivo! Foi mágico e ela estava radiante!
Tínhamos pouco mais de um ano e meio até a data escolhida para o casamento, mas ela já quis planejar todos os detalhes, reservar todos os serviços e fornecedores, me ajudou com tudo e montou uma enorme e bela festa, deixando apenas os detalhes finais para o ano seguinte. Até a lista de convidados ela fez com antecedência. Talvez ela “soubesse” o que nos esperava…
A vida como ela é…
Tudo que é bom dura pouco. Após três meses de dor nas costas, incômodo, diagnósticos e tratamentos errados, tosse e cansaço, novo diagnóstico de uma velha doença: metástase do antigo câncer de mama na pleura (membrana que envolve o pulmão).
Nossa, que dor no coração, que baque para todos. Não, não imaginávamos passar por isso novamente.
Minha mãe se manteve forte, confiante em Deus. Buscamos os melhores profissionais, ela passou por todos os exames e novos ciclos de quimioterapia. Graças à evolução da medicina, apesar da medicação mais forte, efeitos colaterais bem menores. Ao final do tratamento, novos exames e as células cancerígenas não estavam mais lá.
Metástase
Passados seis meses, retorno dos sintomas e lá estavam as malditas de novo…no mesmo lugar, a pleura. Mais exames, tratamento pesado. Era uma mistura de alívio e medo.
Mais seis meses, outros sintomas, exames e mais exames e a metástase tinha chegado à coluna. Nesse momento, a certeza da cura já não existia mais. E mesmo que os médicos negassem a hereditariedade da doença, minha mãe afirmava que o caminho percorrido pelo câncer dela era o mesmo do câncer que matou o pai dela.
O tratamento indicado agora eram sessões diárias de radioterapia. Após os primeiros dias, melhora dos sintomas, esperança, mas apareceram outros sintomas, ainda mais graves: dor de cabeça insuportável, perda da força muscular, perda do equilíbrio, dificuldade motora…
Um último exame, ela já praticamente sem andar, e o diagnóstico final, a metástase chegava ao cérebro, mais precisamente ao cerebelo.
Foram duas tentativas de quimioterapia fracassadas que geraram muita dor para ela e sofrimento para todos. Mesmo os mais competentes e renomados médicos não encontraram tratamento, não havia como os remédios chegarem ao local da lesão.
Meu mundo desabou. Não havia alternativas, não havia chances de sobrevivência, apenas fazíamos o impossível para que ela sofresse menos. Remédios para dor, duas cirurgias cranianas para aliviar a pressão causada pelo câncer e diminuir a terrível dor de cabeça que ela sentia.
Aos poucos ela foi indo embora
Passamos Natal e Ano Novo hospitalizados, eu ali, ao lado dela praticamente 24 horas por dia, daria a minha vida para que ela não sofresse tanto. Depois de 40 dias de hospital, ela nos deixou, aos 58 anos, apenas 8 meses antes do dia do meu casamento.
Meu mundo perdeu o brilho, minha festa de casamento não fazia mais sentido, mas fui até o final, fiz tudo como ela queria, mesmo que ali faltasse uma parte de mim.
Reflexão
Esse testemunho enorme e doloroso para chegar num ponto:
Como julgar, chamar de louca ou inconsequente, uma mulher que faz a opção de se livrar de uma parte do seu próprio corpo com o objetivo maior de evitar que os que ela mais ama sofram?
Como julgar uma mãe que procurou garantir aos seus filhos que a mesma doença que tirou a mãe dela, não tire ela própria deles?
Sou Marize, esposa do Francis há quase 6 anos e mãe do Arthur, de 3 anos e 5 meses e fui mãe do Bruno, por 22 semanas. Somos uma família muito unida, estamos sempre juntos e, com isso, nossas histórias têm sempre a presença dos três, mas descobri que isso nem todas as vezes é bom. Seja como for, Deus escreve certo por linhas tortas.
Foto: Bruna Tassis
Por linhas tortas – Marize Portes Amaral
Em agosto de 2012 descobrimos que estava a caminho nosso segundo bebê. Foi uma surpresa, realmente, um susto.
O primeiro a saber foi o Arthur, antes de pensarmos que eu estava grávida. No dia dos pais disse: Mãe, sua barriga está cheia. Eu concordei e respondi que havia acabado de almoçar. Ele logo me respondeu: Não, está cheia de neném. E logo depois descobrimos que realmente estava “cheia de neném”.
No primeiro ultrassom vimos somente o saco gestacional. Pediram para repetir e no papel estava: controle de ovo cego. “Santo GOOGLE” responde: “gestação na qual o óvulo fertilizado se implanta no útero, mas o embrião não se desenvolve.” Fiquei louca, mas oito dias depois, lá estava nosso bebê, coraçãozinho batendo a mil e os nossos juntos, felizes por estar tudo bem.
Com 11 semanas senti dores muito fortes nas pernas, eu estava inchando muito. O médico do Materdei pediu um ultra e como já estava com o exame de translucência nucal marcado, ele resolveu antecipá-lo.
Mais um susto, coração batendo, mas o bebê não queria se mexer. Estava hipoglicêmico, pois eu não me alimentava há algum tempo. Fomos almoçar no DiamondMall e comprar a tão sonhada “pista de carrinho de montanha do Hot Wheels” que Arthur queria, para o Dia das Crianças. Estávamos tranquilos.
Voltamos. Eu sempre sonhei, na gravidez do Arthur, que tinha um menino de cabelos escuros, lisinhos, em meu colo, e uma menina dos cabelos claros e cacheados, de mãos dadas comigo. Tive esse sonho várias vezes. Mas eu queria outro menino, Arthur queria um irmão. Tudo bem, medidas normais e… era um menino! O pai logo viu. Buscamos Arthur na escola e ele vibrou com a notícia! Arthur escolheu o nome Bruno e assim ficou resolvido! Vinha aí o nosso Bruno! Meus sonhos estavam errados, mas minha vontade se cumpriu!
Com 14 para 15 semanas tive uma crise de sinusite e, pelo que achamos, o Bruno adoeceu, teve seu crescimento atrasado. Fui medicada com Amoxilina e isso o segurou com vida. Mas com 19 semanas, a mesma coisa, lá estou eu com sinusite de novo. Fui à minha médica sozinha, a tia do Francis havia falecido em Barbacena, e escutei o coraçãozinho, a barriga tinha medidas normais. Tudo certinho, mas para mim, tudo continuava estranho, sentia pouco os movimentos dele. Eu não tinha vontade de comprar nada para o Bruno, conversava com ele e sentia uma angústia enorme. Entrava nas lojas, escolhia, escolhia e não levava nada. Ah! Eu já tinha tudo do Arthur guardado… E dessa vez ele não resistiu, mas não sabíamos de nada.
Fomos, eu, Francis e Arthur fazer o exame morfológico! Arthur contou à médica que escolhera o nome do irmão.
Achamos estranho, não víamos nada, não ouvíamos nada. A médica perguntou quando havia sido minha última crise de sinusite. Pediu que Francis saísse com Arthur da sala. O que houve? Ela só meu respondeu: O bebezinho está sem vida!
Gente, eu não esperava engravidar, mas amei meu filho desde o primeiro minuto que soube que ele estava dentro de mim, mesmo não demonstrando! Como foi difícil! Mas ao mesmo tempo era fácil. Sabe quando você chora porque os outros esperam isso de você? Deus estava comigo e Ele tinha me preparado durante aquelas 22 semanas para esse momento. Vi meu Bruno lá, no fundinho do útero, formado, sua coluna, e ele lá, paradinho. Francis chegou com Arthur e eu só disse: Acabou tudo!
Naquela hora ninguém precisou dizer nada ao Arthur. Ele só me deu um copo de água e disse que era para eu sarar e parar de chorar. Foi com o pai para a casa da minha mãe. Francis não contou nada a ele. Contou a minha mãe quando ele não estava perto. Quando se foi, Arthur disse: “vovó, sabia que minha mãe está no hospital? Ela foi ver o Bruno, mas ele não estava lá. Ele foi embora e não vai mais voltar”. Mais uma vez ele sentia tudo!
Aquele foi o pior dia da minha vida. Queria minha mãe. Minha irmã longe. Desejei minhas irmãs de coração e duas delas vieram como um sopro. Paula e Clarissa logo chegaram. Choraram comigo. Foram meu suporte. Sei que Francis sofreu muito naquele dia, mas para mim, na minha frente, ele era forte.
Colocaram comprimidos para induzir o parto. Esperei o dia passar. À noite, Clarissa ficou com o Arthur e mamãe foi me ver. Choramos muito juntas. Começaram as contrações. A bolsa rompeu.
Como o Bruno já estava sem vida há aproximadamente 15 dias, eu quase não tinha liquido mais. Foi tudo muito rápido. Nunca imaginei sentir tanta dor. Desci para o pré-parto. Não consegui deixar o anestesista chegar perto e ali mesmo, meu filho nasceu. Nasceu?
Fui para o bloco, limpeza no útero, não deixaram Francis entrar. Sala de recuperação. Ali, naquele lugar, senti a pior sensação da minha vida. Aquela sim foi a hora que mais me doeu perder meu filho. Sentir meu filho nascer e não chorar, poucos minutos depois ouvir um choro de bebê no bloco e, na recuperação, chegar um pai com o filho nos braços e entregar para a mãe amamentar. Ali sim, meu mundo desabou.
No quarto encontrei meu melhor amigo, meu eterno namorado, me chamando para dançar e dizendo que aquilo não era hora de chegar. Sempre brincando.
A tarefa mais difícil era agora, contar para o Arthur! Bruno virou uma estrelinha e está no céu tomando conta da gente, pois ele estava muito “dodói” e Papai do Céu está cuidando dele. Ele chorou por mais de uma hora dizendo estar com saudades do irmão, viu uma estrela no céu, atrás de um prédio, em um dia ensolarado e dormiu.
Ainda choro por ele, pelo que passamos. Dia 22 de abril foi um dia muito difícil para mim, era o dia marcado para o nascimento do meu filho.
Foto: Bruna Tassis
Agora, sei que Deus escreve certo por linhas retas, por linhas tortas é para quem não sabe interpretar. As respostas vêm, elas vieram durante toda a gestação, com tudo que foi acontecendo. Minhas sinusites adoeceram e levaram o Bruno de nós, não me culpo de não ter tomado corretamente o medicamento da 2ª vez, ali o sofrimento dele acabou.
No início foi difícil pensar em ter outro. Decidi, sozinha, que não iria ter mais. Conversas e conversas com as amigas, Francis falando que não era para me desfazer das roupas do Arthur e eu arrumando tudo, levando para vender… Mas deixo nas mãos de Deus!
Agradeço a Deus pela minha vida por ter nos dado o Arthur, menino lindo, inteligente, esperto até demais, mas doce como nenhum outro. E agradeço a Ele por ter nos dado essa estrela chamada Bruno! Mesmo por pouco tempo, ele nos deu muitas alegrias! Ele tinha um propósito para nós, nos fazendo passar por tudo isso. Estamos ainda mais unidos, Arthur descobriu que também pode contar com o pai, o pai descobriu como ser pai, brincou, pulou, nadou junto, deu banhos intermináveis sentado no chão do banheiro, brincando de dinossauros.
Mães que perderam seus bebês, saibam que eles estão ao lado de Deus, cuidando de nossas famílias e esperando para que possamos, um dia, reencontrá-los. Eu tenho fé nisso!