Eu não fui presa. Eu não precisei usar o SUS, não fiz curetagem, não fiquei internada. Eu fiz aborto seguro, 2 vezes. Por que eu sou branca, de classe média. Tive todas as oportunidades na vida por o ser. Melhor educação, cultura… e a possibilidade de escolher sobre minha vida reprodutiva. Eu fiz 2 abortos nenhum deles virou estatística.
Sobre privilégios ou… O que não vira estatística
Aos dezenove anos eu tinha o mundo inteiro pela frente. Eu poderia ser o que eu quisesse. Eu tinha o namorado maravilhoso (estávamos juntos há 3 anos), estava na faculdade. Descobri que estava grávida com um exame de farmácia. No mesmo dia, fiz um ultrassom, com pedido da minha médica. 5 semanas.
Este período da minha vida é um pouco “nebuloso”. Minhas lembranças são escassas e cobertas de cinza por isso não sei contar cronologicamente como as coisas aconteceram. Eu queria aquele neném. Contei as minhas amigas, meu colegas de faculdade. Porém, o filho, naquele momento, não estava nos planos do meu namorado. Nem da minha mãe. Uma mulher também educada, de classe média, mãe de 3 filhos e CATÓLICA.
1 aborto
Fomos novamente à minha médica, que indicou outra ginecologista que fazia abortos em seu consultório em um dos prédios mais chiques na zona sul da cidade. Com 7 ou 9 semanas, não me lembro exatamente, lá estava eu, juntamente com minha mãe e meu namorado, no consultório. Pagamos algo em torno de 3 mil reais em dinheiro e o “procedimento” aconteceu no mesmo dia.
Ela me deu um remédio pra dor e me deitei. Fechei os olhos… abri só quando ela disse que estava tudo ok e que “meu problema estava resolvido”. Durante muito tempo, quando eu fechava os olhos, eu ouvia o barulho daquela maquina que sugou meu neném de mim. Eu sofri muito por não ter minha vontade ouvida naquele momento. Mas não sofri nenhuma consequência física do aborto feito, o que não é realidade para muitas mulheres.
2 abortos
Aos 31 anos estava recém-divorciada do pai do meu filho, que tinha na época 1 ano e 6 meses. Depois de um fim de casamento sofrido, estava saindo com um carinha. Ficamos algumas vezes. e bum… lá estava eu grávida de novo, apesar do uso de anticoncepcional. Desta vez minha escolha foi de não ter o bebe.
Eu sabia que, naquele momento de transição (filho pequeno, eu ainda me reencontrando profissionalmente depois de ter dar um tempo na minha carreira), não cabia um filho na minha vida. Procurei a mesma médica que havia ido aos 19 anos. Fiz ultrassom, estava gravida de 4 semanas. Ela não tinha mais noticias da tal médica que fazia abortos e, assim como da outra vez, não iria ela mesma fazer o procedimento. Conversando com uma amiga, fiquei sabendo de um outro médico que era a favor do aborto e ajudava suas pacientes. Lá fui eu. Outro prédio chique na área mais nobre de cidade.
Comprimidos
Que médico maravilhoso. Ele me examinou e conversamos muito. Ele me explicou como fazer o procedimento usando remédio, inclusive onde comprar. Meu amigo foi a um shopping popular e rápido conseguiu os comprimidos. Fiz o uso deles em casa mesmo, numa noite em que meu filho estava com o pai dele. Estava de 5 semanas. Tive um pequena cólica e logo a menstruação desceu. Assim ficou uma semana. O tal médico me acompanhou a semana toda por mensagens no celular.
Depois de 10 dias fiz um ultrassom e não havia nem rastro de que eu havia estado grávida. Foram 2 abortos.
Desta vez eu tive a certeza de que havia tomado a decisão correta. Muitos anos se passaram e o “carinha” virou marido. Temos planos de ter um filho juntos, mas ele virá na hora que a gente quiser. Vai ter muito amor, carinho, cuidado e principalmente, pais preparados pra ele.
Eu não sou a favor do aborto. Sou a favor da escolha. Aborto dói. Doeu dentro em mim durante muito tempo. Mas eu tive a possibilidade e o privilegio de fazer 2 abortos em segurança. Apoio incondicionalmente a luta pela legalização do aborto e para que todas as mulheres que escolham por ele, tenham direito à mesma dignidade e atenção que eu tive. Que saiam dele vivas e aptas a continuarem a fazendo suas escolhas.
Anônima
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