Espero contribuir de alguma forma para quem quer refletir sobre a questão da descriminalização do aborto.
Sobre a minha verdade da vida que mata os outros e sobre os sentidos do proibido em práticas existentes no Brasil
Legislação
Existem pelo menos dois tipos de proibição na legislação: uma que pretende que uma prática não exista, não a reconhecendo e outra que define uma prática como crime. No primeiro caso, não há exatamente uma punição para a prática, ela não existe, não é reconhecida e não tem proteção, do ponto de vista do Estado. No segundo caso, a realização da prática proibida leva à prisão da pessoa que realizou o ato.
Até o final da década de 1970 o divórcio era proibido no Brasil. Ao divórcio não era crime, ele simplesmente não existia. Não era reconhecido. Não tinha proteção do Estado. As pessoas que se separavam não eram presas, não eram punidas, mas elas não tinham amparo jurídico. O que significa que também não poderiam se casar novamente. As pessoas também não deixavam de separar por causa disso, mas elas eram muito mais estigmatizadas. E ainda mais estigmatizadas eram as segundas uniões dessas pessoas, que também não deixavam de acontecer por falta de reconhecimento legal.
Mistura de valores pessoais e definição de direitos
Um dos motivos pelos quais o Brasil demorou tanto a reconhecer o divórcio era que as pessoas misturavam seus valores pessoais com a definição de direitos. Isto é, a crença individual ou a doutrina religiosa pela indissolução do casamento se desdobravam em pressões políticas que negavam os direitos civis das pessoas de terminarem o casamento. A separação entre Igreja e Estado é um dos pilares do Estado Moderno de Direito mas, e muitos casos, as pessoas ainda têm certa resistência em entender “o que é de Deus” e “o que é de César”. O que é compreensível se lembramos que a união entre Estado e Igreja, na civilização crista ocidental, durou cerca de 1300 anos.
Mas também existe uma certa confusão entre o reconhecimento de um direito e o estímulo a uma prática. As pessoas temiam que o reconhecimento do divórcio fosse um estímulo à fragilização do casamento, que percebiam como sagrado, e a sociedade passasse a trocar de cônjuge como trocar de namoro. Então, elas achavam que a proibição jurídica era uma forma de afirmar e proteger uma cultura.
O que define de fato os comportamentos não são as leis
Aliás, no Brasil, todos ouvimos falar de leis que “pegam” e leis que “não pegam” e sabem que as leis que são muito distantes da nossa cultura simplesmente “não pegam”.
Um exemplo interessante é o cigarro. O cigarro nunca foi proibido e é vendido em qualquer lugar, inclusive sem pedir identidade para verificar a idade de comprador. As décadas de 1950 e 1960 romantizaram o hábito de fumar e universalizaram um vício que, com os anos, se mostrou desastroso para a saúde. Por volta de década de 1990 houve um investimento massivo em informação e conscientização sobre os riscos do vício do cigarro. Ele perdeu a glamourização que ainda podia ser vista nas propagandas de cigarro dos anos 1980 e, desde meados dos anos 2000, é impressionante a diminuição da quantidade de viciados em cigarro, especialmente entre os jovens. A legislação proibitiva de fumar em alguns aspectos veio depois e em complementação a essa verdadeira mudança cultural, não o contrário.
Precisamos falar sobre a descriminalização do aborto
Hoje, no Brasil, o debate sobre a descriminalização do aborto tem sido deslocado para um debate sobre ser a favor ou contra o aborto. Há, novamente, uma confusão de sentidos, de princípios, de fins, de meios de valores, de direitos. Em primeiro lugar, a proibição do aborto não é como a proibição do divórcio. Ela é daquele segundo tipo. Isso significa que a mulher que aborta, atualmente, no Brasil, se for denunciada, será presa, julgada, condenada, ficará presa. Os médicos, enfermeiros, os companheiros, qualquer um que tiver participado, será cúmplice.
Acontece que as mulheres não tem deixado de abortar, historicamente, por causa dessa proibição. E também não tem deixado de existir um mercado ilegal envolvendo os abortos – especialmente, clínicas e medicamentos. Essas clínicas e esses medicamentos que, oficialmente, não existem, também não são fiscalizados e, com isso, é um mercado sujeito a todo tipo de descuido, irresponsabilidade, falsificações, e um mercado de preços altos, como na maioria dos mercados ilegais.
Mercado
Com isso, esse mercado é acessado por quem tem dinheiro para pagar os produtos e serviços em questão. E não vamos nos iludir, não é um mercado pequeno, a clientela é vasta. O aborto é um procedimento arriscado em qualquer circunstância. Mesmo nas perdas gestacionais espontâneas, algumas vezes há complicações que colocam em risco a vida reprodutiva e mesmo a vida toda da mulher. Nos casos de aborto provocado, esses riscos aumentam.
Como as clínicas clandestinas são clandestinas, muitas vezes, quando algo sai errado, essas mulheres vão parar na rede formal de atendimento, com problemas mais graves ou menos graves. Como o aborto atualmente é um crime, as equipes médicas que atendem essas mulheres na rede formal de saúde têm obrigação de denunciá-las, ou se tornam cúmplices, mesmo não tendo qualquer participação no ato. Muitos, muitíssimos profissionais de saúde, por diversos motivos, não fazem isso, e acatam as explicações falsas dadas pela mulher ou criam falsas explicações. Ou seja, gerando mais práticas ilegais que, no entanto, são cotidianas no país.
Práticas ilegais
Para as mulheres que não conseguem acessar o mercado ilegal de aborto assistido, sobram as práticas caseiras, cujos relatos são muitas vezes inacreditáveis, de chás, agulhas de tricô, remédios para rato, saltos em altura, pesos sobre a barriga, etc. Quando os problemas vêm imediatamente, elas são encaminhadas aos hospitais do SUS, já tão sucateados, onde nem sempre conseguem atendimento e onde mais uma vez levarão a práticas ilegais das equipes que as socorrem.
A quantidade de mulheres que morre no país todos os anos, a quantidade de mulheres que ficam estéreis, a quantidade de mulheres cujos abortos são ineficazes mas geram graves problemas e com isso os bebês nascem com problemas sérios é muito maior que estamos dispostos a admitir. E, depois, quem junta os pedaços dessas mulheres, depois de experiências tão traumáticas? Isso também não existe.
Descriminalização e banalização
A proposta de descriminalização do aborto não busca criar uma realidade de banalização do aborto, até porque isso é algo super difícil. A história dos países que adotaram práticas muito rigorosas de controle de natalidade, mostra isso, uma vez que, mesmo nesses países, onde, muitas vezes, o aborto era obrigatório, isso nunca ficou banal e produziu gerações e gerações absolutamente traumatizadas.
Seria necessário um trabalho de construção de cultura para incentivar a prática do aborto. Que músicas cantassem como é simples interromper uma gravidez. Seria necessário um trabalho em que esse incentivo fosse ensinado na escola. Em que as novelas mostrassem práticas felizes e corriqueiras de aborto. Em que os filmes mostrassem como isso é simples e comum. E as famílias os assistissem no domingo à tarde.
Cultura
Foi assim que criaram a cultura do cigarro e depois acabaram com ela. É assim que criam culturas de consumo. É assim que as crianças aprendem sexualização precoce. É assim que elas aprendem que a mentira e a hipocrisia são normais e quem segue todas as regras é bobo. É vendo os pais mentindo, enganando e descumprindo as regras que as crianças aprendem que isso é normal.
A descriminalização do aborto é o reconhecimento a uma realidade que já existe no Brasil, que mata, que aleija, que alimenta um mercado horroroso. A prática ou não do aborto vai continuar dependendo:
- das escolhidas que uma mulher consegue enxergar quando se descobre grávida,
- da estrutura de amparo que ela sabe que tem ou não tem para criar uma criança que ela não planejou,
- especialmente quando a mulher é muito jovem, muito pobre, quando o pai não do bebe não aceita a gravidez.
Doenças sexualmente transmissíveis
Alguns métodos contraceptivos protegem também contra doenças sexualmente transmissíveis. Algumas dessas doenças têm crescido assustadoramente entre os jovens. É dever da sociedade, do Estado e da família alertar os jovens para:
- os riscos da desproteção sexual,
- dos riscos de uma gravidez inesperada e
- dos riscos de contrair uma doença.
- É dever também ensinar que a interrupção de uma gravidez não é, nunca foi e nunca será uma coisa automática e simples.
Temos ouvido cada vez mais relatos sobre violência obstétrica. A mulher casa, planeja a gravidez, faz tudo como manda o figurino mais conservador e, no momento sublime de dar à luz, sofre violência nos hospitais e maternidades. A mulher que sofre uma perda gestacional ou que perde o bebe pouco depois de nascer também sofre violência no hospital. Será que, se o aborto fosse permitido, se houvesse a descriminalização do aborto, a mulher que chegasse no hospital para realizá-lo, seria tratada com flores e tapete vermelho, elogiada e acharia a experiência tão boa a ponto de querer repetir?
“Tudo posso, mas nem tudo me convém”
O certo e o errado, como convicções pessoais, independem de leis. Quem age de acordo com suas convicções não faz o errado, mesmo que seja legal. “Tudo posso, mas nem tudo me convém”. Quem tem fé e liga suas convicções a uma espiritualidade e a um julgamento espiritual, não precisa ver ninguém sendo julgado e punido pelo Estado para estar em paz.
A descriminalização do aborto não busca aumentar as “mortes” de fetos. Isso vem da conscientização de cada um e das possibilidades de apoio que a sociedade efetivamente consegue oferecer. Ela busca diminuir o número de mortes de mulheres e de mortes da possibilidade de filhos no futuro. Ela busca enfrentar um mercado imenso e ilegal. Ela busca reconhecer o direito de uma escolha dura de quem se viu sem opções.
Não faça aborto, ensine sua filha a não fazer, escolha bem as horas e as proteções do ato sexual e ensine isso aos seus filhos, ensine seus filhos a assumirem as consequências dos atos deles. Mas, para nenhuma dessas coisas, você precisa matar nem prender a mulher que aborta. Descriminalização do aborto, pense sobre isso!
Texto de Nati Lelis
_____________________________________________________________________________
Quer saber mais?
Selecionamos algumas matérias com dados a repeito:
Mãe e católica, médica assume o principal serviço de aborto legal do país
O que aconteceu após 10 anos de aborto legalizado em Portugal
Após legalização, desistência de abortos sobe 30% no Uruguai
Mortes em abortos clandestinos podem aumentar com aprovação de PEC
Leia também:
Duas perdas. Duas mulheres.