12 de abril de 2016
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MINHA CESÁREA HUMANIZADA

Eu precisei de uma cesárea. É isso que eu respondo toda vez que me perguntam se eu tive parto normal. Reparei isso há pouco tempo. Eu nunca falo simplesmente, “não, foi cesárea.” Eu sempre informo que eu PRECISEI de uma cesárea humanizada. Por que essa necessidade de me justificar? Se você já leu sobre partos em qualquer comunidade na internet, você deve saber que o julgamento rola solto.

MINHA CESÁREA HUMANIZADA
por Gabriela Lessa

Então, eu reafirmo: eu precisei de uma cesárea. Talvez alguém leia a minha história e ache que a cesárea não era tão necessária assim. Sempre tem alguém pra julgar o que é ou não é necessário na vida dos outros. (Não consegui achar nenhum caso na internet com a exata combinação de fatores do meu parto, então não sei dizer qual seria a opinião mais aceita.) Mas o meu objetivo não é discutir a necessidade da cesárea nesse caso. O meu ponto é que a cesárea não era a minha primeira opção. É claro que, estando grávida de gêmeos, eu sabia que as chances de parto normal eram menores do que as de uma mãe de um bebê só. Mas eu também sabia que era possível. E eu sou grande, com quadris largos, “corpo de parideira”, como sempre me disseram. Se alguém ia conseguir parir gêmeos de parto normal, era eu!

É claro que isso foi discutido com o meu médico. E ele concordava comigo: nada de cesáreas desnecessárias. Essa é a grande vantagem de se ter um médico em quem você confia plenamente. Eu tenho a plena certeza que a todo o momento ele pensou em mim e nos meus bebês. Eu tenho a plena certeza de que ele não me enganou. Ele esperou. Até que chegou o momento em que ele falou que a cesárea era necessária. E era mesmo. E eu tive uma cesárea humanizada.

Esse é o momento em que você pensa naquela cesárea mágica, né? Uma doula na sala de parto. As luzes mais fracas. O ambiente quentinho. Os bebês da barriga direto pros meus braços. Quem sabe até um musiquinha clássica pra relaxar….

É, não foi exatamente assim, uma cesárea humanizada. Eu lembro de flashes, na verdade. Quando comentamos do meu parto outro dia, as palavras do meu marido foram, “Não gosto nem de lembrar.” As do meu pai? “Nunca vi tanto sangue na vida.” Minha mãe se lembra de ter tirado a família da salinha ao lado e levado todo mundo pro quarto, onde eles esperaram pelo médico. Quando ele finalmente chegou ao quarto para dar notícias, ela se lembra de ter reparado no rosto dele: pálido. “E a minha filha? E a minha filha?” A resposta que ela recebeu foi, “AGORA está tudo bem. Mas foi um susto.”

E esse é o momento em que você me chama de louca, né? Como um parto desses pode ter sido humanizado?

Vamos voltar um pouquinho no tempo então. Como eu disse, o meu plano era tentar parto normal até o último segundo. O meu médico concordou, e disse que contanto que o bebê que estava mais embaixo estivesse na posição cefálica, eu poderia ter um parto normal tranquilamente. Eu já pesquisei a respeito, e realmente não achei nenhum artigo em que se defenda o parto normal de gêmeos sem que o feto 1 (o bebê que vai nascer primeiro) esteja encaixado. A maioria, na verdade, defende a necessidade dos dois bebês estarem em posição cefálica, mas meu médico defende que, depois que o primeiro saiu, tem jeito de manobrar o segundo. O máximo que poderia acontecer (e, claro, ele me alertou dessa possibilidade) era o primeiro nascer de parto normal e o segundo precisar de uma cesárea. Algumas pessoas desistem diante dessa possibilidade, mas eu realmente acreditava na minha capacidade de ter os dois de parto normal.

E assim cheguei para o ultrassom de 38 semanas. Bebês com mais de 2,5 quilos cada. Barriga enorme. Colo do útero completamente fechado. Nenhum sinal de contração. Feto 1 (a menina) em posição oblíqua, de nuca. Feto 2 (o menino) em posição transversal, de umbigo pra baixo. Essa é aquela posição que, se não for revertida até o momento do parto, é indicação de cesárea.

Na cabeça do médico, tudo se encaixou. Eu não tinha entrado em trabalho de parto ainda não porque os bebês não estavam prontos, mas porque o meu útero havia perdido a capacidade de contrair. Era um palpite, claro, mas um palpite bem embasado pelas evidências do ultrassom e do exame de toque. Diante da situação, ele disse que recomendava a cesárea naquele dia mesmo. Mas aí veio o primeiro sinal da humanização: ele não fez terrorismo. Na verdade, ele nem mencionou a expressão “atonia uterina” (a condição da qual ele imediatamente suspeitou, e que se comprovou na hora do parto).

Ele não me assustou. Ele simplesmente disse que os bebês estavam muito grandes e fora de posição, que meu útero já estava muito distendido, que o colo do útero estava completamente fechado, e que ele recomendava uma cesárea naquele dia. Eu perguntei se não havia como induzir contrações com ocitocina. Ele me disse que com os bebês fora de posição e o colo do útero espesso como estava, não havia como. Eu concordei e fomos para o hospital. Porque quando você tem um médico da sua extrema confiança (no meu caso, meu primo de segundo grau), é assim: você não desconfia das intenções dele. Você sabe que ele está realmente fazendo o melhor possível pra você e pros seus bebês.

A sala de parto era normal. Eu, calorenta de primeira, achei o clima deliciosamente confortável. Não sei se eles teriam alterado a temperatura se eu tivesse pedido, mas eu estava bem daquele jeito. Nada no ambiente me incomodou. O meu marido ficou comigo o tempo todo. Os médicos e enfermeiras eram educados, simpáticos, sorridentes. Não falavam sobre eles e sim sobre mim, sobre os meus pequenos, sobre as minhas expectativas, sobre como seria emocionante ver os rostinhos deles. Eu me senti acolhida.

E aí começou o parto.

Na hora que a minha filha saiu, eu já senti a tonteira. Comentei com o anestesista, achando que talvez fosse uma reação à anestesia, que ele tivesse exagerado na dose. Ele sorriu e disse, “Assim não dá, né? Vou olhar pra você. Já vai passar.” Mas não passava. Os dois obstetras foram ficando sérios. Um disse para o outro, “Placentas acretas.” Eu me lembrei vagamente daquele nome. Tinha acontecido num episódio recente de Grey’s Anatomy, não tinha? No episódio, a mãe tinha morrido. “Tio, está tudo bem aí?” Ele sorriu pra mim. “Tudo sob controle, fica tranquila. Lá vem o rapaz!” Ele veio. Mas eu não lembro bem. Muita tonteira, muito enjoo. Eu repetia para o anestesista, “Estou passando muito mal mesmo.” Ele segurou a minha mão, sorriu, e perguntou o meu tipo sanguíneo. “Não preocupa. Está tudo bem.” A sala rodava. Agora a minha voz já estava fraca. “Tio, está tudo bem aí?” Os dois obstetras estavam concentrados no meu útero. “O seu útero está demorando um pouquinho pra voltar, mas está tudo bem.” Eu, completamente grogue, perguntei se amamentar não adiantaria, para estimular a liberação de ocitocina. Ele sorriu. “É uma boa ideia. Espera só eu fechar aqui, tá?” Ele não comentou que, num caso daquela gravidade, nem um balde de ocitocina adiantaria. (Aliás, nem no momento, nem nunca. Quem comentou isso depois, ao ouvir o relato, foi uma amiga minha, também obstetra.)

Os bebês foram trazidos pros meus braços.

Uma pediatra de cada lado, apoiando os dois. Meu marido segurando por cima. Nós não temos a foto clássica em família na sala de parto. Metade das pessoas na sala estava ocupada salvando a minha vida, e a outra metade estava segurando os bebês para que eu pudesse ter a sensação de tê-los nos meus braços, mesmo sem ter forças para isso. Na verdade, a essa altura, ninguém sabia como eu ainda estava consciente. Com a hemorragia, já era pra eu ter desmaiado. Mas eu não sabia disso. Eu continuava falando, e todo mundo continuava fazendo o possível pra me dar uma experiência tranquila, pra não me alarmar. Ninguém disse que eu poderia morrer. Claro, se a coisa ficasse feia mesmo, eles provavelmente teriam me sedado e tirado o meu marido da sala. Mas enquanto eu não estava de fato à beira da morte, eles se controlaram. Fizeram o seu trabalho sem me assustar. Respeitaram o meu momento. Meu marido não foi tirado da sala. Meus bebês não foram tirados da sala. Eu não me senti a pessoa que estava lutando pela vida sozinha. Eu nem sabia que eu estava lutando pela vida. Eu estava me emocionando com os meus bebês enquanto os médicos lutavam por mim—por nós. Quer coisa mais humana que isso?

Quando a cirurgia finalmente acabou, colocaram uma bolsa de areia morna em cima do meu abdômen, para forçar o útero a voltar. E eu voltei a insistir: “quero amamentar.” E eles deixaram. Na sala de parto mesmo, com um tanto de gente ao meu redor, colocaram a minha pequena no meu peito. E foi só aí que eu percebi que tinha algo muito errado. Porque foi um segundo de emoção. E depois o mundo rodou. Uma ânsia de vômito me consumiu, e eu comecei a tremer incontrolavelmente. Só consegui gritar, “Alguém tira ela do meu colo! Segura ela!” E seguraram. E aí eu não lembro de mais nada.

Quando eu voltei à consciência, no pós-operatório, eu estava com três cobertores e um jato de ar quente por baixo da coberta, e ainda assim eu sentia frio. Eu tinha acessos nas duas mãos e nos dois braços, um deles para a transfusão de sangue (foram necessárias três bolsas). E meu marido estava lá com os meus bebês. Eles não saíram de perto de mim por um segundo. Eu não podia amamentar, mas quando eles choraram, eu chorei junto. E a enfermeira disse que eu ainda não tinha forças para amamentar, precisava da transfusão primeiro, o médico só tinha autorizado a amamentação depois da transfusão. Mas que eu já estava forte o suficiente para segurá-los. E assim foi. Eles vieram para os meus braços, meu marido do meu lado, e eu cantei para que eles se acalmassem. Lindo!

Depois, é claro, eu fui juntando as peças do quebra-cabeças. Começou com a enfermeira que, tentando me consolar na minha frustração de não amamentar nas primeiras horas, me disse, “Você teve muita sorte e um médico muito bom. Normalmente gente na sua situação vai pro CTI. Você está aqui com seus filhos. Fique tranquila.” Depois, nos dias que seguiram, cada médico que vinha me visitar parecia aliviado: “Você passou um susto na gente hein, moça?” Passei? Foi tanto assim?

Na verdade, eu já estava com anemia havia cerca de dois meses, sendo controlada por doses semanais de ferro na veia. A anemia estava sob controle, mas com a atonia uterina e o acretismo das placentas (é quando a placenta entra pra dentro do músculo do útero, o médico depois me explicou), a hemorragia foi muito grande. Minha hemoglobina chegou a três. Como eu não parava de sangrar, o médico precisou improvisar: foi dando pontos dentro do útero nos locais onde as placentas tinham causado a hemorragia, mas ainda tinha a hemorragia causada pela atonia. Eram dois médicos massageando para que o útero voltasse logo ao normal, mas ainda assim foi muito. Provavelmente foi a adrenalina do momento que me manteve acordada.

No final, deu tudo certo.

Foi como eu tinha planejado? Não. Mas isso desumaniza o parto? De forma alguma. Eu fui respeitada. Eu me senti cuidada. A minha vida foi salva. Os meus bebês nasceram com saúde. Eu não fui deixada sozinha. Eu recebi carinho. Talvez o tabu do parto humanizado esteja na expectativa. Talvez esteja na definição de humanizar. Afinal, desde quando que humanizar é tornar perfeito, mágico, um conto de fadas, uma fotografia digna de prêmio? Quer coisa mais humana que problema, imprevisto, medo?

Eu não julgo a escolha de nenhuma mulher, por isso não digo que sou contra esse ou aquele tipo de parto. Não sou adepta da cesárea agendada nem do parto domiciliar, prefiro uma coisa no meio termo. Opinião minha. Que pode ser diferente da sua. E por isso, nossos partos humanizados serão diferentes. A humanização começa com a escolha do tipo de parto que a gente se sente confortável. Forçar uma mulher a ter um parto natural na água, por exemplo, seria tão desumano quanto forçá-la a ter uma cesárea desnecessária. A humanização começa em deixar a mulher confortável para fazer suas escolhas. Eu fiz as minhas. Não consegui o parto que eu esperava. Mas consegui seguir com meu plano de confiar no meu médico e colocar a saúde dos meus filhos acima de tudo (acreditem, poucas conseguem um relacionamento paciente-médico com esse grau de confiança). Consegui ser bem cuidada e tratada como gente. Consegui o meu objetivo maior: sair do hospital viva e com dois filhos saudáveis. Teve problema, teve drama, teve dificuldade. Faz parte de ser humano. Humanizar, pra mim, é isso. Ser tratada como gente, independentemente do tipo de parto. Humanizar, pra mim, é trazer sentimento. É trazer cuidado. É aceitar as limitações, acreditar na força, e resolver o problema da melhor forma possível. Um parto humanizado, para mim, é aquele que trata a mulher como ser humano. Quando se olha por esse ângulo, será que é mesmo tabu?

Gabriela Lessa

 

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