Vamos falar sobre morte com nossas crianças? Esta pergunta por si só já nos paralisa. A morte é um daqueles temas que queremos evitar a todo custo, algo do qual nos esquivamos o quanto podemos. Até que a vida nos coloca diante dela. E é isso … vida e morte andam juntas!! Não temos como separá-las. Mas lidar com a finitude não é fácil. Vamos falar sobre morte com nossas crianças?
Vamos falar sobre morte com nossas crianças?
Fui a um velório pela primeira vez quando era adolescente. Lidar com o tema morte foi muito difícil porque durante a minha infância ele foi evitado, mesmo perdendo pessoas próximas. Já adulta, estudando psicologia, um dia resolvi que queria fazer estágio num hospital e então ouvi: se vocês querem trabalhar aqui precisam pensar que alguns pacientes morrerão. Parecia óbvio, não é? Hospital e morte estão diretamente ligados. E então lá fui eu, fazer um curso sobre morte. Sim, isso existe. E foi uma das melhores coisas que fiz.
O curso, somado à análise ao longo da vida, me ajudaram a refletir melhor sobre este tema tão espinhoso. E o primeiro paciente que acompanhei, era uma criança de 3 anos, que morreu depois de três meses nos quais eu o atendia três vezes por semana. Quando eu cheguei ao quarto, ele tinha acabado de falecer. E lá eu tive que ficar dando suporte para os pais e segurando o choro que insistia em descer. Eu era uma menina de vinte e poucos anos.
E a vida continuou me desafiando:
Depois de perder meus avós, perdi minha cunhada. Aí eu já era mãe, tinha uma filha de um ano. Minha cunhada morreu de câncer de mama aos 38 anos e deixou dois filhos de três e cinco anos. Foi um sofrimento muito grande para todos nós e coube a mim o encargo de contar para as crianças o que tinha acontecido com a mãe deles. E naquele dia eu entendi o porquê daqueles anos de estudo. Eu precisava ter passado por esta reflexão. E por isso, hoje eu queria dividir com vocês o que aprendi com tudo isso. Como pessoa, como mãe e como psicóloga.
Quando buscamos a literatura sobre o tema, encontramos uma série de autores que se preocuparam em estudar a relação da criança com a morte. De maneira geral, considera-se que a aquisição do conceito de morte ocorre junto com o desenvolvimento cognitivo da criança. Por isso, crianças de até 4 anos tratarão a morte como algo reversível e terão um pouco mais de dificuldade de entender o que realmente acontece.
Compreender a morte
Depois dos 4 anos até por volta dos 6/7 anos a criança poderá começar a questionar sobre a morte da mesma maneira como questiona outros fatos da vida, como a clássica pergunta “de onde vem o bebê?”. Aos poucos ela irá compreender que a morte não é um processo reversível e por volta dos 5/6 anos poderá inclusive angustiar-se com isso, temendo a morte de seus pais ou de pessoas próximas. Após os 07 anos a criança começará a desenvolver a capacidade de lidar melhor com conceitos abstratos, reunindo melhores condições de conversar sobre a morte.
A partir disso, precisamos pensar que infelizmente nem sempre a vida vai esperar nossos filhos crescerem para os confrontarem com esta questão. A morte pode vir a partir da perda de um animal de estimação, de uma plantinha ou de um ente muito querido. E aí a angústia passa a ser nossa: o que falar? Como lidar?
Evitar sofrimento
A grande maioria das pessoas acredita que o melhor é poupar a criança deste assunto, é evitar o sofrimento. Entretanto, acabamos esquecendo que as crianças são muito mais sensíveis e espertas do que imaginamos. E essa tentativa de evitar o assunto ou de poupá-la pode ter o efeito contrário. Qualquer assunto que é tratado na família como algo proibido, escondido é percebido pela criança de forma angustiante. As pessoas às vezes podem achar que ela não está percebendo ou se importando com aquilo e o que geralmente ocorre é que nossos pequenos passam a sofrer sozinhos, por acharem que aquilo não pode ser dito e nem perguntado.
Então o que fazer? O melhor é ser sincero e objetivo com a criança. Aquela orientação básica. Fale, objetivamente, se ela quiser saber mais, ela vai perguntar. O importante é a criança sentir que existe um canal aberto e principalmente acolhedor. O bichinho de estimação morreu não saia correndo para comprar outro ou invente uma história. Sentar com o seu filho e falar a verdade é o melhor que pode ser feito. Ele vai chorar? Claro! Ele vai sofrer? Claro! Mas que bom que ele vai contar com o seu abraço e com sua presença. Infelizmente a vida não nos poupará disso e dessa maneira, nossos filhos aprenderão a desenvolver recursos para lidar com os sofrimentos que batem na nossa porta!
E quando é alguém próximo? Como fazer?
A mesma coisa. O melhor é falar: “meu filho, mamãe está triste o vovô/ vovó morreu… nós não o veremos mais!” A criança vai chorar? Sim! Você pode chorar? Claro… você também está sofrendo! E importante que ela reconheça isso e perceba que não tem problema nenhum chorar! A vivência do luto vai existir de qualquer maneira e é melhor que aconteça junto com você!
É muito importante evitar comentários do tipo “o papai do céu levou”, “o vovô dormiu”… esses comentários confundem a criança. Apesar de eu não ter dito isso para um dos meus sobrinhos, alguém posteriormente falou isso e como ele era muito pequeno, ele ficou indignado com o Papai do Céu por ter levado a mãe dele embora. Claro que em algum momento você pode dizer que a pessoa falecida está no céu, etc, se isso está de acordo com as crenças religiosas da família, mas para uma criança muito pequena, isso pode ser mais difícil de processar e só deve ser dito depois que tiver sido explicado que a pessoa morreu.
É muito importante que a notícia seja dada por uma pessoa muito próxima da criança, na qual ela confia. Isso ajudará a compreender e como já dissemos a se sentir acolhida e livre para expressar o que sente. Claro que é importante que essa pessoa não esteja desesperada com a situação e que consiga mesmo na dor transmitir certa tranquilidade para a criança.
Tabu
Agora talvez o maior tabu de todos seja quanto a participação das crianças nos velórios e enterros. Para falar sobre isso, primeiro precisamos entender que o velório é um ritual. Um ritual necessário para o processo de luto. Além de ser um momento onde as pessoas podem se abraçar e vivenciar juntos esta dor é o momento onde a morte está ali concreta na nossa frente. Por isso é tão difícil.
Precisamos entender também que essa dificuldade é cultural. Em algumas culturas as crianças participam de tudo e o velório é uma celebração. Além disso, antigamente os funerais ocorriam na presença de todos, inclusive das crianças. Na prática da psicologia, também observei que essa diferença existe entre as classes sociais. Entre as populações mais pobres a participação das crianças no funeral é mais natural do que nas classes mais altas. Portanto, a priori, participar não causa um prejuízo emocional na criança como se costuma pensar. O que observo é que a dificuldade é nossa. Nós é que não queremos ver a criança sofrer e achamos que a estamos poupando disso.
Vários estudos mostram que é importante dar à criança a oportunidade de escolher participar ou não deste momento. Ao contar que a pessoa morreu, deveríamos explicar o que vai acontecer, como é o velório e o que ela vai encontrar. Se a criança quiser ir, podemos dar a ela a oportunidade de desenhar ou levar algo para deixar junto com a pessoa falecida. Isto é um ritual e pode ajuda-la a compreender o que está acontecendo, que estamos vivendo um momento de despedida, que é doloroso, mas que estamos juntos.
Ideia equivocada
Existe uma ideia equivocada de que a criança vai guardar apenas aquela imagem do velório. Mas, isso não acontece na prática. Muitas vezes a criança, chega, se despede e depois fica bem, as vezes melhor do que todos nós. E os relatos que temos de pessoas que levaram os filhos para vivenciar estes momentos, não são seguidos de vivências traumáticas pela criança. Ou seja, a criança não fixa naquela imagem. Pode acontecer de ela ter aquela sensação por alguns dias, como acontece conosco, mas provavelmente vai passar. E ela guardará sim as boas lembranças da pessoa querida. Caso isso se estenda talvez seja importante procurar uma ajuda profissional.
Se ainda assim, for muito difícil para você levar a criança, ou se a criança não quiser ir, é fundamental que ela seja participada o quanto antes do que está acontecendo. Evite fingir que não está acontecendo e ofereça a ela a chance de fazer uma carta/ desenho de despedida!
Luto
Depois do velório/ enterro, toda a família viverá um período de luto. Não poupe a criança desta vivência. Se ela chorar porque está com saudades, chore com ela, acolha, esteja por perto. Da mesma forma como sofremos, ela vai sofrer e vai querer falar sobre isso. E às vezes vai falar repetidas vezes, o que para nós pode ser uma tortura, para ela é um processo de elaboração. Se for uma criança muito pequena provavelmente ela perguntará muitas vezes quando a pessoa querida vai voltar, etc. E aí teremos que explicar tudo de novo. Uma hora ela vai entender.
Acho fundamental compreendermos que a nossa boa intenção de poupar a criança de vivenciar o luto pode fazer com que ela sofra muito mais. Quando não se conta, por exemplo, que alguém próximo faleceu ela provavelmente vai perceber rápido a ausência e não encontrando apoio para compreender a situação vai evitar tocar no assunto, dando-nos a falsa impressão de que está lidando bem com isso. A criança que não consegue vivenciar o luto pode desenvolver uma série de sintomas, nem sempre associados com a situação de perda. Por isso, o nosso olhar atento e nossa abertura são fundamentais.
Sentimentos
Falo para vocês que até hoje é difícil lidar com os sentimentos e perguntas dos meus sobrinhos, mas saber que eles têm esse canal aberto nos alivia muito. Ao escrever sobre este tema, lembro-me de uma linda frase que diz: o amor é tão forte como a morte. E para finalizar, só consigo pensar no imortal Rubem Alves, que falava da morte com uma leveza incrível e peço a Deus que nos ajude e nos ensine a ter um pouco dessa sabedoria:
“Um velório deveria ter a beleza do outono, toda a beleza do último adeus. Os oficiantes teriam de ser os melhores amigos… Teria de haver música, do canto gregoriano ao Milton. E poesia. Nada de poesia fúnebre. Cecília Meireles para dar tristeza. Fernando Pessoa para dar sabedoria. Vinicius de Moraes para falar de amor. Adélia Prado para fazer rir. E Walt Whitman para dar alegria. E comida. De aperitivo, Jack Daniel’s… comida de Minas de entrada… e de sobremesa minhas frutas favoritas. Coroas de flores mortas, nem pensar! Pedirei aos que me amam que semeiem flores em algum lugar – um vaso, um canteiro, a beira de um caminho…”
Rubem Alves – Em defesa das flores in O amor que acende a lua, 1999
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