06 de dezembro de 2013
Comentário( 1 )

Racismo por Jéssica Rocha

Meu nome é Jéssica Rocha da Silva Aguirre, tenho 30 anos, e moro em BH há um ano e meio. Minha vida foi um mar de confusões e, praticamente, um tema sobre cada assunto, ficar restrita a um só tema é complicado para mim, mas vou falar de racismo.

Nascida e criada em Salvador, aos três meses de nascimento minha mãe me deixou aos cuidados de minha avó materna, para poder trabalhar porque eles moravam ainda em palafitas. Meu pai trabalhava à noite numa empresa de bebidas como empilhador e minha mãe era caixa de supermercado.

Racismo

por Jéssica Rocha

Até os sete anos eu vivi num apartamento comprado pela minha mãe, junto com quatro filhos de minha avó. Um drogado viciado em heroína. Uma tia louca que quando não tomava seus medicamentos saía nua pelas ruas insultando as pessoas. E dois filhos de criação. Lembro de que aos sete anos, meu tio, usando drogas, estava no seu momento agressivo, e espancou a própria mãe para que ela desse a ele dinheiro para comprar o “bagulho”, e como ela negou, ele a agrediu, e que em um momento de desespero, eu comecei a gritar:

“Você Vai matar minha mãe!”

Eu estava apenas de short, pois iria tomar banho, mas quando vi minha avó ali no chão rastejando, tentava arrasta-la com minhas mãos, até que ele veio para cima de mim. Não sei como, minha avó criou forças para me tirar dali, e saímos sem destino pelas ruas, abraçadas correndo. Depois deste caso fomos morar com meus pais biológicos.

Educação

Apesar de vivermos em palafitas, meus pais queriam que eu tivesse uma boa educação, e além do mais, a empresa que meu pai trabalhava arcou com os meus estudos até os quinze anos. Fui para uma boa escola, onde tinha muitas pessoas de pele clara. A garota da favela (palafita), numa escola de classe média. Meu pai me deu uma bicicleta para minha locomoção, e todos os dias minha avó trançava meus cabelos para a escola.

Certa vez, uma colega viu onde eu morava, e espalhou para todos, e foi o começo de tudo. Até então eu tinha problemas maiores para lidar, como a de a maré encher, e como entrar em minha casa, ou até mesmo como cuidar para que não danificasse os aparelhos. Quando cheguei certo dia na escola, fui vítima de racismo, todos falavam que eu era a “preta do esgoto”, “a preta da invasão” ou “a preta favelada”. Era um grupinho de garotas meio que invejosas por eu tirar boas notas, pelos professores gostarem de mim, aquilo me fez mal, humilhada.

Encurralada

Aos nove anos, este grupinho de seis meninas, me encurralou na saída da escola, e me bateram, chegaram a cortar com um canivete algumas de minhas tranças. E ao chegar a casa só conseguir ter conforto aos braços de minha avó. Não me lembro de minha mãe fazer algo, se teve alguma reunião a respeito, pois fiquei quase que um mês em casa aos prantos de medo, sem coragem. Até que um dia resolvi pedi a meu primo que me ensinasse capoeira, me empenhei demais em algumas semanas para aprender a me defender e a bater também. Voltei à escola, e os ânimos tinham se acalmado, mas mesmo assim eu vivia com o meu “alerta ligado” sempre.

Após algum tempo fui encurralada num beco, por três desta vez. Armei-me com a corrente que prendia a bicicleta como arma, e saí brigando. Cheguei em casa com algumas dores, mas orgulhosa de mim por ter me defendido, pois também dei uma surra nelas. Após o ocorrido, minha mãe foi chamada, e quando ela foi conversar comigo, ela me disse que tinha ficado orgulhosa por eu ter me defendido, e que o que elas fizeram era por que era negra e pobre, mas que elas tiveram o seu castigo que foi a expulsão de uma escola.

Faculdade

Anos se passaram, entrei na faculdade, e foi então que conheci o meu marido. Conhecemo-nos na noite de réveillon na praia da Barra, onde estava acompanhada de minha mãe. Ele me viu numa roda de samba dançando com algumas pessoas que conheci na praia, e se aproximou e puxou conversa. Como eu estava fazendo engenharia, e ele era engenheiro, eu tinha a curiosidade de trocar ideias com alguém já formado na área.

Conversamos, trocamos e-mails, e ele voltou para a Alemanha onde fazia um doutorado. Ele é Argentino. Um mês depois conversando pela internet, ele me pediu em namoro, e eu aceitei (como eu já estava sem namorado há dois anos, eu aceitei como brincadeira, nem mesmo levava a sério). Após um mês de namoro, ele me surpreende dizendo que estava vindo para o Brasil e que o lugar mais próximo que encontrou emprego foi o Rio de Janeiro, e se eu queria morar com ele um dia. Como assim?

Namorado

Contei a minha mãe o que aconteceu, e a primeira reação dela foi:

“Mas ele É BRANCO?”

Um ano de namoro, foi se passando, certa vez, estávamos caminhando pela Orla após um dia de praia, e Bruno (meu marido) foi procurar um banheiro, enquanto eu fiquei no ponto esperando por ele, e se aproximou um carro e me perguntou quanto custava. Isso mesmo, quanto custava o programa. Sou uma pessoa que não é de ter paciência pra idiotas, e fui atropelando: “Não sei se chamo a polícia e grito que você é um estuprador ou arrebento a sua cara e seu carro!”  A reação foi do cara me pedir desculpas, e falou que pensou pelo fato de eu estar acompanhada por um “branquelo gringo” que eu poderia fazer programa.

Mas até então eu sabia lidar com “as caras” de estranheza de muitos da minha terra. Quando eu apresentava a algum tio, o meu namorado, eu era vista como que “aquela que quer embranquecer a família”, e realmente esta é a reação mais nojenta que você pode presenciar.

A pior parte de tudo isso foi quando decidimos ir morar juntos. A pessoa que eu tinha o maior respeito, depois de minha avó, que era a minha mãe não apoiou. Como sou filha única, existia o medo de perder a filha, mas nada justifica as palavras que foram jogadas:

“Você será escrava de branco!”,

“Você é preta e ele vai te tratar como empregada”,

“Depois que ele cansar de você vai trazer uma branca pra sua casa!”.

Mágoas

Foi ai que percebi que minha mãe estava na década errada, ou melhor, no século errado. Eu não me encaixava naquele jeito de pensar, eu não me encaixava na maneira de pensar baiana da minha família. E foi então que eu decidi mesmo dar a cara à tapa. Lembro-me do meu pai, mandando minha mãe calar a boca após estes bombardeios de agouros, e pensar no que falou. Mas a palavras foram jogadas, e aquilo me alimenta muitas das mágoas que tenho até hoje. Fui! Fui com uma mão na frente e outra atrás, e quando cheguei ao Rio de Janeiro, conheci pessoas que tinham orgulho de ser negro, o jeito carioca e malandro. Foi lá que aprendi a duplicar o meu orgulho de ser pretinha, o meu orgulho nagô.

Muitas pessoas ficam abismadas em saber, que SIM a Bahia é racista! Um bloco Afro diz que só permitirá que os brancos possam desfilar nos carnavais, quando acabar o racismo na cidade.

Muitas das vezes eu acho que a questão do racismo, vem da maneira como a pessoa se aceita. Hoje em dia, o racismo é mais social-racial. Tenho filhos e, muitas vezes, sou passada como a babá das crianças, e isso já me fez ter a frase certa para estas pessoas:

“É eu cuido deles sim, e sempre que possível ainda durmo com o pai”.

Argentina

Minha primeira viagem à Argentina foi um desastre, devido a tantos olhares, e naquele eu tempo eu não tinha a maturidade que tenho hoje. Achava que era racismo, achava que queriam me humilhar. Surtei.

Segunda viagem também. Até que um dia, uma tia do meu marido, me explicou o tanto que as pessoas me olhavam em Mendoza, era por que eu era exótica. Custei a acreditar. Custei a entender. Mas ela me fez ver do jeitinho sábio dela, que o exótico é algo diferente. O “belo diferente”.

Não tem muitos negros na Argentina, e eles não disfarçavam a surpresa quando me viam nas ruas. Certa vez, uma argentina se aproximou na fila do supermercado, eu estando com os cabelos armados e esvoaçados pelo vento, os cachos caindo pela cara por eu ter dado a prancha, e me confessou que inveja a minha cor, como era viva, como tinha expressão.

Racismo

Hoje com a cabeça que tenho, acho que há racismo só se você permitir. Se uma pessoa acha que sou inferior por eu ser:

  • negra,
  • alta,
  • magra,
  • gorda,
  • branca,
  • amarela,
  • loira
  • ou ruiva.

A única coisa que posso sentir por esta pessoa é PENA. Não sinto ódio, rancor e magoa como antes sentia. Sinto pena. Pena pelo fato de ser atrasado. De ser uma pessoa intolerante. E burra. Ninguém é inferior ou superior a ninguém. É apenas mais uma pessoa que não teve valores morais passados pela família. Com quem eu não terei nem mesmo a vontade de ter um relacionamento. Sempre escolhemos com quem queremos nos relacionar, pessoas que nos acrescentam. Pessoas que nos fazem especiais e nos as fazemos serem especiais.

Hoje sou respeitada pela minha família, por dois motivos:

  1. Primeiro por eu me pôr no meu lugar, e se tiver de bater de frente pelo que acredito eu bato de frente;
  2. e segundo que o marido que eles achavam que iriam me tratar como empregadinha, me trata como uma rainha.

Hoje, todos o respeitam e gostam dele, o aceitam muito bem, e talvez até a forma como ocorresse essa a aceitação, se pareça a um filme de comédia.

Jessica Rocha Divando no Paraíso

COMENTE: